Título: Pays de Cocagne
Autor: Antonio Delfim Netto
Fonte: Valor Econômico, 22/11/2005, Brasil, p. A2

A argüição do ilustre ministro Antonio Palocci na sessão da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal terá sido um dos momentos mais memoráveis desta sessão legislativa. Nela ficaram muito claros alguns pontos importantes. 1) as acusações contra a administração do ministro quando prefeito reeleito, isto é, escolhido pela segunda vez por seus concidadãos, não produziram, depois de cinco ou seis anos de investigações, qualquer indiciamento pela Polícia Federal e pelo Ministério Público. Acresce que a natureza dos denunciantes, seu passado (confessado) e o comportamento depois que se desligaram do ministro, mostra uma singular falta de decência e exala o odor de um tardio "sfogo di rancore"; 2) praticamente todos os parlamentares reclamaram da qualidade dos serviços físicos (infra-estrutura, energia, portos etc.) e da falta de "políticas públicas" para atender à população (à mãe gestante, à infância, ao jovem, ao idoso, aos doentes, aos aposentados e aos que já se foram...). Exigiram mais gastos e mais programas. Não se falou em gastos supérfluos nem em apoiar a mais importante "política pública": um choque de gestão que reduza os desperdícios e dote o governo de instrumentos para coibir o abuso das corporações abrigadas no seio da administração. Hoje, ele assiste impotente (por que quer ou por que não sabe o que fazer?) a meses de paralisações do INSS (o que prejudica a qualidade do atendimento à saúde) e da Receita Federal, que atrasa os despachos aduaneiros (o que prejudica a economia nacional); 3) apesar de insistirem "na falta de recursos", não se ousou propor um aumento de impostos. Todos reconhecem que a repulsa popular à Medida Provisória 232 foi tal, que obrigou o governo a retirá-la. É um aviso da sociedade, que se recusa a entregar mais recursos a um Estado, que embolsa em média 145 dias de trabalho de cada cidadão e é incapaz de protegê-lo dos abusos das corporações; 4) diante do que supõem ser falta de recursos (e não ausência de prioridade, excesso de vinculações e falta de firmeza administrativa na busca de produtividade), nada foi sugerido além da "redução do superávit primário". O país assistiu atônito à afirmação que o equilíbrio fiscal buscado pelo governo Lula é apenas um maravilhoso ardil retórico do neoliberalismo vendido como "responsabilidade fiscal". Como a história registra, para cada problema econômico complexo existe, sempre, uma solução simples... e errada! Parece que bastaria eliminar o "superávit primário" para o Brasil transformar-se no "Pays de Cocagne", onde todos encontram a satisfação completa de suas necessidades e o gozo ilimitado de todos os prazeres!

Um "totó" na dívida é um "totó" sobre os cidadãos

É mortal para tal argumento que a realidade, além de não permitir um aumento da carga tributária bruta, impõe outra condição (verificada empiricamente) que não é produto das virtudes retóricas do neoliberalismo: a relação dívida líquida do setor público/PIB encontra no Brasil um limite superior em 56%. Aí o "mercado" entra num estado de taquicardia e exige juros cada vez maiores para o financiamento da imensa dívida mobiliária do Estado brasileiro em "poder do público" (quase R$ 1 trilhão!). A solução ainda mais simples (com a qual suspeito que alguns barulhentos senadores "flertam em seus sonhos") seria renegar essa dívida, porque ela "faz apenas a alegria dos bancos". O equívoco dessa solução é que não é o capital dos banqueiros que financia a dívida, mas os depósitos nos seus bancos, que pertencem a todos nós (meu, seu e dos senadores...). Logo um "totó" na dívida é um "totó" sobre todos os cidadãos, exatamente como aconteceu no Plano Collor... quando os bancos nada sofreram! É a solução ainda mais simples... e ainda mais errada. Mas, afinal, o que é esse maldito "superávit fiscal", objeto do ódio de todos os "progressistas"? Ninguém sabe qual é o nível "ideal" da relação dívida/PIB, mas há claras indicações práticas de que a administração financeira é muito mais simples e eficiente quando ela existe. Se, por exemplo, a taxa de retorno de um investimento é superior à taxa de juro real, vale à pena realizá-lo com o aumento da dívida, porque ela antecipa investimento, cuja externalidade aumenta a produtividade do investimento privado. Mas, obviamente, é um crime contra o futuro endividar-se para financiar o custeio. Aquela relação parece ser mais "virtuosa" quando em torno de 30%, em países como o Brasil. Um dos objetivos da política econômica deve ser, portanto, reduzi-la de 52% (o nível atual) para 30% num prazo de cinco ou seis anos. Pois bem, o famoso "superávit primário" é o nível de poupança do Estado que mantém a relação dívida/PIB constante e que se destina a pagar parte do juro da dívida. Nas condições atuais, o superávit primário que mantém o nível da dívida/PIB (52%) é da ordem de 5%. Se ele for menor (4,25% ou 3,5% como se sugere), a relação vai crescer e o "mercado" vai exigir uma taxa de juro maior para financiar a dívida mobiliária do Estado, porque o "risco de default" vai aumentar. Talvez tudo isso seja apenas fantasia da "maravilhosa retórica do equilíbrio fiscal neoliberal"!