Título: Desequilíbrios na economia mundial
Autor: Yoshiaki Nakano
Fonte: Valor Econômico, 22/11/2005, Opinião, p. A13

O desempenho extremamente favorável da economia mundial nos últimos dois anos, muito acima da sua trajetória histórica, foi o principal fator para o crescimento da economia brasileira de 4,9%, em 2004, e próximo a 3% neste ano. Depois dos sucessivos choques externos na conta de capitais (1995, 1997,1998/99, 2001 e 2002) que provocaram elevações nas taxas de juros e contração no nível de atividade econômica, estamos já no terceiro ano sem contágios e crises financeiras. Não há nenhuma crise financeira com data marcada ou previsível num futuro próximo na economia mundial. Mas, simplesmente extrapolar para o futuro a situação favorável que vivemos hoje envolve riscos e pode trazer surpresas e provocar novas volatilidades em algumas variáveis macroeconômicas. Observar o comportamento da economia mundial e focar os pontos que potencialmente podem desencadear crises para nos prevenir é o mínimo que precisa ser feito. Neste sentido, um dos principais problemas da economia mundial é o grande déficit de transações correntes dos Estados Unidos - que, em 12 meses, atingiu US$ 750 bilhões -, acompanhado de déficits fiscais e de política monetária frouxa, apesar da elevação da taxa de juros pelo FED. Para uma primeira linha de interpretação deste quadro, um déficit em transações correntes de tal magnitude seria insustentável e a desvalorização do dólar seria inevitável e, em decorrência, uma elevação mais forte da taxa de juros pelo FED. Isto traria não só uma desaceleração da economia mundial, mas também os capitais financeiros deixariam de fluir para os países emergentes. Esta combinação traria, certamente, consequências danosas para a nossa economia, que viveria novamente o ciclo bem conhecido de desvalorização cambial e, mantida a atual política de meta rígida de inflação, elevação da taxa de juros e nova contração no nível de atividade. Para esta linha de interpretação a questão seria apenas de timing. Para uma segunda linha de interpretação, o déficit em transações correntes norte-americano seria sustentável por um período prolongado de 10 a 15 anos. Na verdade, o déficit em transações correntes dos Estados Unidos tem como contrapartida o superávit dos países asiáticos. Estes países teriam recriado, informalmente, o acordo de Bretton Woods, utilizando a taxa de câmbio desvalorizada como elemento central da sua estratégia de rápido crescimento através da expansão das exportações, principalmente para o mercado norte-americano. Para estes países asiáticos, os superávits sistemáticos nas transações correntes têm um papel estratégico, pois ao financiarem o déficit em transações correntes, estão permitindo o aumento das importações dos Estados Unidos que são, na verdade, exportações destes países e, portanto, geração de emprego e crescimento. Assim, enquanto não se esgotarem os trabalhadores desempregados e completarem a construção de uma estrutura produtiva nacional competitiva, os bancos centrais destes países acumulariam reservas em dólar ou títulos do tesouro norte-americano. Este processo poderia ainda levar 10 a 15 anos. Desta forma, recriou-se o sistema de Bretton Woods com estabilidade e sustentabilidade prolongadas. Temos, desta forma, uma situação que contraria o conhecimento convencional: países emergentes aumentando a sua poupança acima dos investimentos e canalizando para os Estados Unidos, um país rico, e financiando o seu déficit em transações correntes, ou seja, o consumo e o investimento acima do que produz. De fato, a China tem hoje reservas cambiais acumuladas de US$ 770 bilhões e a Índia, US$ 138 bilhões. Combinando com demais países asiáticos, sem incluir o Japão, as reservas somam pelo menos US$ 1,8 trilhão. Estima-se que cerca de 80% destas reservas são mantidas em dólar.

Países com superávit atrelam suas moedas à do país com enorme déficit e, por isso, a paridade entre elas pode ocorrer de forma súbita

Mas os superávits em transações correntes da China com demais países asiáticos para este ano são estimados em US$ 188 bilhões, enquanto o déficit norte-americano está em torno de US$ 750 bilhões. Mesmo considerando os superávits do Japão, de US$ 164 bilhões, e da Alemanha, de US$ 113 bilhões, lembrando que a área do euro no seu conjunto tem transações correntes equilibradas, a conta não fecha, pois o mundo no seu conjunto tem por definição transações correntes equilibradas. Aqui entra uma terceira corrente de interpretação, apontando um fato novo. Com a elevação do preço do petróleo, os países exportadores, incluindo a Rússia e Noruega, quadruplicaram o seu superávit em transações correntes nos últimos dois anos. O FMI estima que este superávit deverá atingir US$ 400 bilhões este ano e, se o preço de US$ 59 o barril for mantido, deverá atingir US$ 470 bilhões em 2006. Não é possível estabelecer se os países exportadores de petróleo estão financiando diretamente o déficit norte-americano, como é possível no caso dos países asiáticos, cujos superávits são acumulados pelos bancos centrais. Não há dados, mas certamente uma parcela significativa, senão a quase totalidade destes superávits, estão indo para títulos do tesouro norte-americano, financiando o seu déficit. É isto que mantém o dólar relativamente estável e exerce uma pressão para baixo na taxa de juros, tanto nos Estados Unidos como na Europa. Apesar de o FED elevar as taxas de juros de curto prazo, as taxas mais longas resistem a se elevar. Outro fato importante é que a maior parcela dos petrodólares não são administrados como reservas oficiais dos bancos centrais, não fazem parte de uma estratégia de desenvolvimento nacional. Como estes petrodólares buscam certamente retornos maiores, o dólar torna-se muito mais vulnerável que as reservas asiáticas. Portanto, temos aqui um novo elemento a ser considerado dentro do mercado global de capitais. Assim, na atual configuração temos de um lado os Estados Unidos com enorme déficit de transações correntes e de outro lado dois grupos de países. O primeiro composto pelos países asiáticos com superávit em transações correntes mais persistente e que poderão financiar parcela do déficit norte-americano também de forma mais persistente. De outro, os países exportadores de petróleo com enorme superávit em transações correntes, mas com possibilidade de serem muito mais voláteis. Nesta situação, o conhecimento convencional concluiria que o mercado provocaria o ajuste gradual e normal com a desvalorização da moeda do país com déficit e valorização da moeda dos países com superávit. Mas não é o que acontece. Pior, tanto os países asiáticos como os países exportadores de petróleo atrelam as suas moedas ao dólar, isto é, países com superávit em transações correntes atrelando a sua moeda à do país com enorme déficit - portanto, a paridade entre essas moedas poderá ocorrer de forma súbita.