Título: Os riscos da economia argentina
Autor: Cristiano Romero
Fonte: Valor Econômico, 23/11/2005, Brasil, p. A2
Tem sido comum, no Brasil, dizer que a economia argentina, que escolheu trilhar caminho oposto ao da brasileira, está numa situação muito mais vantajosa. Um dos indicadores sempre citados é o famigerado risco-país, calculado pelo banco JP Morgan. Ontem, o risco da Argentina, que depois da moratória recente chegou a superar 6.500 pontos básicos, caiu para 359, 13 pontinhos apenas acima do risco brasileiro. Traduzindo para o português, isso poderia sugerir que a Argentina, que acabou de aplicar um mega calote em seus credores, já se financia no exterior a uma taxa de juros parecida com aquela que é cobrada do Brasil. Para a alegria, e a ilusão, de muitos observadores, a economia argentina, que no ano passado expandiu 9% e neste ano deve crescer 7,8%, estaria dando certo porque rejeitou a ortodoxia imposta pelo sistema financeiro internacional. Não é verdade. É preciso, primeiro, qualificar a importância do indicador "risco-país". "O que ele mede é uma percepção de calote em papéis do Tesouro numa perspectiva de prazo de três a quatro anos. Não mede mais do que isso. Portanto, é uma medida muito ligada às contas do setor público", explica o economista Paulo Vieira da Cunha, do HSBC em Nova York. No curto prazo, é justificável que os credores acreditem que o governo argentino honrará suas dívidas. O país acaba de sair de uma moratória. A dívida externa foi reestruturada e isso derrubou o risco-país de mais de 6.500 pontos para 910 pontos básicos em junho. Tecnicamente, antes da queda, a Argentina estava se financiando, se houvesse credores, a uma taxa de juros 65% superior àquela que é paga pelo tesouro americano. Ainda em junho, o risco-país caiu novamente, dessa vez, para 450 pontos. A nova queda também teve explicação plausível. O governo argentino emitiu papéis (os "discounts"), como parte da reestruturação, com cláusulas especiais de garantia. Na esteira disso, a agência Moody's, seguindo sua concorrente (a Standard & Poor's), reclassificou o país, retirando-o da lista negra e colocando-o na prateleira intermediária. A mudança permitiu que novos fundos de investimento, mundo afora, passassem a adquirir papéis argentinos. "Com essas garantias, a melhora de 'rating' e dada a liquidez internacional, a demanda pelos papéis argentinos tem sido muito significativa, ocasionando a queda do prêmio de risco", diz Alessandra Ribeiro, especialista da Tendências Consultoria Integrada em economia internacional. "Podemos dizer que a forte queda do risco argentino está relacionada em grande medida a fatores técnicos. Igualou-se ao brasileiro, a despeito das fortes diferenças de fundamentos econômicos."
Brasil leva vantagens nos fundamentos
A palavra-chave é justamente essa: fundamentos. Os indicadores de solvência da economia argentina, lembra Alessandra, são muito piores que os do Brasil. Em 2004, a Argentina fechou o ano com uma dívida externa que equivale a 95% do PIB ou 4,2 vezes o valor das exportações anuais do país - no Brasil, a dívida externa caiu para 33,4% do PIB naquele ano e deve fechar 2006 em 26,9% ou 1,6 vezes o volume das exportações. A relação dívida pública/PIB está em torno de 85% na Argentina. No Brasil, está em 51,7%, com perspectiva de queda. Embora tenha um risco-país equivalente ao brasileiro, a economia argentina, por causa do calote, não tem conseguido se financiar no mercado internacional. "As empresas não conseguem captar como no Brasil. O governo não consegue emitir. É um país que está fora do mercado de crédito", observa Roberto Padovani, da Tendências. Investimento direto, só de empresas brasileiras, como atesta Paulo Vieira da Cunha. "A perspectiva de investimento real na Argentina continua terrível. Quem investe mais lá hoje são os brasileiros (Petrobras, Camargo Correa), que acreditam conhecer o país vizinho mais do que os outros. De resto, todo o mundo continua querendo sair", diz o economista. Há outros problemas no horizonte. A inflação, que em 2005 deverá ser quase o dobro da alta verificada no ano anterior, é uma ameaça. As tarifas públicas estão congeladas desde a crise de 2001. Há uma inflação reprimida considerável porque 25% do índice de inflação são tarifas. "Há inflação de demanda e uma perspectiva de que a âncora nominal da economia, que seria a taxa de câmbio, também comece a deslizar porque, com a perspectiva de inflação, não fica tão claro que, se o BC deixar de comprar, a moeda vá para 2,50. Ela pode perfeitamente ficar em 3,00 e daqui a pouco ir para 3,10, 3,20 por causa do próprio processo inflacionário", explica Vieira da Cunha, chamando atenção para os desequilíbrios do modelo "heterodoxo" adotado pelo país vizinho, que combina juros negativos com âncora cambial. É verdade que a Argentina saiu do buraco. Com o fim da conversibilidade, seu PIB encolheu 10,9% no ano seguinte, depois de já ter amargado três anos consecutivos de recessão. Os indicadores, porém, estão piorando (ver tabela). "O Brasil está plantando melhor seu crescimento sustentável que a Argentina, ainda que no curto prazo a gente tome de goleada. Nos cenários de sustentabilidade, o Brasil leva vantagens", observa Padovani.