Título: Razões de Estado
Autor: Eliana Cardoso
Fonte: Valor Econômico, 24/11/2005, Brasil, p. A2

A democracia chinesa é garantida pela ditadura do povo. Até parece frase do Lula, mas não é. Está no documento "Building of Political Democracy in China" distribuído pelo Partido Comunista Chinês (PCC), em outubro deste ano. O texto explica. A revolução de 1911 de Sun Yat-sen pôs fim ao sistema monárquico e anunciou a aurora da democracia. Mas sua conquista se deve ao PCC, que, fundado em 1921, chegou ao poder após 28 anos de luta. E lá continua, graças à "democracia", sem a qual o socialismo é impossível. É ruim? Talvez você considere um cara-de-pau o político que chama o branco de preto. Torquato Accetto discorda. Ele se propôs (em "Della dissimulazione onesta", livro publicado em 1641, e redescoberto por Benedetto Croce em 1928) a resgatar a dissimulação, indústria que consiste em fazer as coisas parecerem o que não são. Há quem veja no livro de Accetto apenas o elogio de uma virtude pessoal. Quem esconde o que lhe falta, defende-se de sua carência. Quem esconde o que lhe sobra, protege-se da inveja dos outros. A dissimulação seria, assim, um exercício de paciência contra a fatalidade e a dor. A piedade filial do empregado doméstico. A disciplina do diplomata. O martírio do mordomo de Kazuo Ishiguro em "Os resíduos do dia". Qualidades familiares a Torquato na função de secretário dos Caraffa (que eram casta importante na Nápoles do século XVII e aparecem em "Anna, Soror...", de Margueritte Youcenar). Mas uma leitura política da dissimulação honesta veria no seu argumento razões de Estado. Nada ganha quem proclama a verdade antes da hora. A arte de calar, seduzir e falar por enigmas é arma-chave da estratégia de poder. Nosso presidente a usa. Mas tropeça nas palavras e nos deixa ver que faz o que não diz e diz o que não faz. Lula ainda tem o que aprender com os chineses, que aconselham o político a ser insondável como as nuvens. Lá vão eles: chamam a ditadura de democracia e constroem uma sociedade que provoca medo nos Estados Unidos . As Forças Armadas americanas temem o crescimento armamentista chinês. Condoleezza Rice expressa a preocupação de Washington. Um relatório anual de um comitê do Congresso americano reflete a convicção de que a modernização militar da China é uma ameaça. No futuro, o conflito com o Oriente Médio poderá parecer insignificante quando comparado à competição militar que vai definir o século XXI: a China será um adversário mais poderoso do que a Rússia. Hoje, o atrito é comercial e deriva de um déficit anual de US$ 200 bilhões. Os Estados Unidos se queixam de que a moeda subvalorizada dá ao país dos mandarins uma vantagem injusta, e acusam seu governo de manipular o yuan. Em julho, ele desatrelou a moeda do dólar, adotou uma cesta de moedas como âncora e permitiu uma valorização de 2% do yuan. Mas continua sob a acusação de manter a moeda subvalorizada. O artigo IV do estatuto do FMI estabelece que os países-membros não devem manipular a taxa de câmbio para ganhar vantagem em relação a outros membros. Uma provisão define a manipulação como "uma intervenção em larga escala, demorada e numa única direção".

China será rival mais poderoso do que a Rússia

A intervenção chinesa se encaixa nessa definição. As compras de dólares do banco central subiram de US$ 57 bilhões em 2001, para US$ 207 bilhões em 2004. Os US$ 660 bilhões de reservas (iguais às importações de 12 meses) não justificam a acumulação sob a alegação de que as reservas são inadequadas. Por causa da violação das obrigações do artigo IV, o FMI poderia tornar o país inelegível para seus empréstimos. Mas eles não despertam o interesse chinês. Portanto, a ameaça é inconseqüente. Em menos de 20 anos, a China passou a exportar quase todos os bens manufaturados que antes importava e se transformou num enorme importador de commodities. O comércio com a América Latina multiplicou-se nove vezes nos últimos cinco anos. Hoje provoca sentimentos díspares. De um lado, o México e a América Central vêem ameaçado seu lugar no mercado de roupas. Do outro lado, Argentina e Peru contam com as compras chinesas de bens primários para garantir seu crescimento. Enquanto isso, o Chile fecha um acordo de comércio com a China. E o Brasil fica no meio do caminho: reclama da competição, mas se beneficia de crescentes exportações agrícolas e quer uma parceria para desenterrar o projeto hidráulico de Monte Belo. A China vai transformar-se no motor do crescimento mundial se o crescimento anual de 9% dos últimos 25 anos persistir nas próximas décadas. Em conferência da revista "Economic China Quarterly" (Hong Kong, 8/11/2005), Carsten Holz (Universidade de Hong Kong) mostrou estimativas de um crescimento médio chinês de 8% ao ano durante os próximos 20 anos. Embora o crescimento da força de trabalho deva atingir seu pico em 2013, já vem sendo compensado pela aceleração do nível educacional. O Japão e a Coréia do Sul cresceram durante 40 anos. A China poderá repetir a façanha com a transferência de trabalhadores da agricultura para a indústria e os serviços (atividades de maior valor adicionado) e com a cópia das inovações de regiões mais desenvolvidas. Já Clint Laurent (do instituto de pesquisa Asian Demographics) acredita que o pico do crescimento da mão-de-obra ocorrerá em 2008, e que o crescimento chinês médio anual das próximas duas décadas ficará em 4,8%, insuficiente para permitir um desenvolvimento equilibrado. As autoridades reconhecem que, em 2004, tiveram de conter 74 mil protestos de desempregados, aposentados e vítimas de corrupção. O PCC diz que a China é uma democracia, mas o presidente Hu Jintao não hesitará em fazer uso da força para manter o controle sobre uma sociedade turbulenta. Fábulas econômicas O lançamento do meu livro "Fábulas Econômicas" será no dia 30, às 19 horas, na Livraria Saraiva (rua Joaquim Floriano, 466, em São Paulo). Você está convidado.