Título: Para Alfonsín, integração foi acelerada demais
Autor: Sergio Leo
Fonte: Valor Econômico, 25/11/2005, Especial, p. A12

Brasil, Argentina e os outros países do Mercosul erraram ao estabelecer metas de integração comercial ambiciosas demais, ao mesmo tempo em que não se empenharam o suficiente para coordenar suas políticas macroeconômicas e não desenvolveram iniciativas de cooperação em outras áreas, como ciência e tecnologia. A opinião é do ex-presidente argentino Raúl Alfonsín, de 78 anos, que com o encontro realizado há 20 anos em Foz do Iguaçu com o ex-presidente José Sarney abriu caminho para diminuir a desconfiança mútua que marcava o relacionamento entre os dois vizinhos, impulsionando a aproximação que posteriormente deu origem ao Mercosul. "A integração do Cone Sul ficou vinculada a problemas comerciais. E talvez tenha sido acelerada demais, porque se atingiu a união aduaneira em cinco anos, quando nós prevíamos dez anos", disse em entrevista ao Valor. Formalmente, o Mercosul é uma união aduaneira desde 1995, mas ainda há diversas exceções à Tarifa Externa Comum e normas que não foram regulamentadas que impedem que o bloco funcione como tal. Segundo Alfonsín, teria sido melhor que o Mercosul tivesse se consolidado primeiro como zona de livre comércio, para depois passar ao estágio de união aduaneira. Apesar dos problemas, o ex-presidente recordou o encontro com Sarney em Foz do Iguaçu, há 20 anos, como um marco na mudança de "uma política de confrontação por uma política de solidariedade". Alfonsín, que governou seu país de 1983 a 1989, afirmou que, apesar dos conflitos existentes ainda hoje, acredita que o fortalecimento do Mercosul "é a forma de enfrentar dois problemas: a globalização não-solidária, que apaga todas as diferenças, e o tribalismo de quem pensa em sistemas individuais, isolados, sem abertura ao mundo". Leia a seguir os principais trechos da entrevista. Valor: Houve algum episódio que motivou a idéia de realizar o encontro e aproximar os dois países? Raúl Alfonsín: Estávamos os dois, eu e Sarney, convencidos de que tínhamos de acabar com uma etapa de incompreensão e desentendimentos entre o Brasil e a Argentina. Estávamos decididos a colocar em marcha a idéia de crescer juntos. Eu pedi ao presidente Sarney para visitar a usina de Itaipu, que havia trazido alguns problemas e distanciado os dois países (os governos militares argentinos se opuseram à construção da usina). Isso foi visto como um gesto de amizade, de modo que, se buscamos um fator detonador para tudo isso, podemos encontrá-lo aí. Depois, mais para frente, havíamos encontrado a fórmula para enriquecer urânio, e eu convidei o presidente Sarney a ir à unidade de enriquecimento, em Bariloche. Disse que podia vir com os técnicos que quisesse, para demonstrar que nossas intenções eram absolutamente pacíficas. Depois ele me convidou à planta de enriquecimento brasileira. Valor: Havia setores que resistiam à integração? Alfonsín: Não, em nosso país não havia resistência, já estávamos cansados de ter suspeitas um em relação ao outro. Até mesmo algumas estradas não eram construídas, não se levantavam algumas pontes porque se supunha que podiam vir as tropas do Brasil, o que era um verdadeiro disparate. Mudamos uma política de confrontação por uma política de aproximação e solidariedade. Valor: E entre os militares, houve resistência? Alfonsín: Não tenho nenhum dado concreto, mas o que eu suponho é que, se houve alguma resistência, foi entre os militares brasileiros, que desconfiavam, mas no nosso país não aconteceu isso. Valor: Sentiram algum tipo de pressão externa? Alfonsín: Em geral, os EUA sempre estiveram contra os projetos de integração da América Latina, mas não se manifestaram diretamente sobre o tema, apesar de sempre desconfiarem. Valor: Avaliando os caminhos tomados pelo processo de integração, há algum aspecto que no seu entender deveria ter sido tratado de maneira distinta? Alfonsín: Sim. Logo no início assinamos vários protocolos, porque não se tratava apenas de um problema comercial. Também falávamos de programas culturais, científicos e tecnológicos. Havia a intenção de fabricar juntos um avião, com peças produzidas no Brasil e em uma fábrica na província de Córdoba. Infelizmente isso foi paralisado depois que saímos do governo e a integração do Cone Sul ficou vinculada a problemas comerciais e talvez acelerado demais, porque se atingiu a união aduaneira em cinco anos, quando nós prevíamos dez anos. Valor: O sr. acha então que o objetivo obter a união aduaneira rapidamente foi muito ambicioso? Alfonsín: Acho que pode ter sido o motivo pelo qual existem dificuldades que ainda não foram superadas. E os projetos de integração produtiva não avançaram. Valor: Como o sr. avalia as oscilações que existem de um lado e de outro no apoio ao Mercosul? Alfonsín: Aqui começaram a levantar-se algumas vozes sustentando que há um problema de Brasil-dependência e que nossos industriais não podem suportar a competição com os industriais paulistas. Mas algumas das pessoas que se manifestam dessa maneira são a favor da Alca, como se fosse mais fácil competir com os EUA. Há também outro problema, de natureza cambial. Teríamos de edificar no Mercosul políticas macroeconômicas similares. Poderíamos ter uma moeda comum especial, de tipo contábil. Pensamos nisso com o Sarney e o nome da moeda seria "gaúcho". Valor: Como o sr. vê o papel dos sócios menores no Mercosul? Alfonsín: Acho que o Brasil e a Argentina tem de cuidar do Uruguai e do Paraguai com uma conduta pendente a resolver os problemas dos países menores. Valor: O sr. acha que Isso é viável politicamente, quando os dois sócios maiores também têm graves problemas? Alfonsín: Claro que sim. Não se trata de fazer doações de dinheiro, mas de compreender as necessidades comerciais desses países e lhes permitir vender seus produtos aos nossos países. Vai ser bom se sobretudo o Paraguai superar seus problemas de pobreza. Se pensarmos com miopia, os problemas podem voltar-se contra nós no médio e longo prazo.