Título: Narciso acha feio o que não é espelho
Autor: José Castello
Fonte: Valor Econômico, 25/11/2005, EU & FIN DE SEMANA, p. 4;5;6

Aqui e ali, o pensamento eugênico aparece na crônica da vida nacional. Seja nas declarações do presidente do PFL, Jorge Bornhausen, sobre raças a serem extintas, seja em ações como a dos jovens que, anos atrás, atearam fogo a indígenas que esperavam ônibus em um ponto de Brasília. Hoje, ele já está bem mais distante da produção intelectual, mas deixou marcas substantivas na cultura brasileira. "A Cura da Raça", de Éder Silveira, é excelente para se compreender de onde veio e por onde prosperou o pensamento eugênico no país. No livro, publicado pela Editora Universitária da Universidade de Passo Fundo, o autor deixa claro que, no Brasil, ao contrário do que se deu em outros países, não houve eugenia sem higienismo. E vice-versa. A busca da raça pura passava pela limpeza de corpos e mentes, sem espaço a desequilíbrios. Por estas terras tropicais, Narciso definitivamente parecia achar mesmo feio o que não lhe era espelho. Essa mentalidade, diz Silveira, concebida em terreno colonizador, desembarcou da Europa de Charles Darwin transmitida nestes trópicos pelas veias do naturalismo e do cientificismo. Silveira conta que as raízes da eugenia higiênica brasileira foram plantadas já na postura de nossos descobridores. Exóticos, os povos da América atravessaram séculos no pensamento europeu forjando novos mitos sobre a barbárie, como diz Silveira, até que a ciência moderna começou a se consolidar nos séculos XVII e XVIII, conferindo-lhes no estudo da natureza e da humanidade um outro olhar. O Iluminismo, então, abordava a diferença - conceito tão abominável para o racismo que foi se formando aos poucos na cultura ocidental até florescer no século XIX em noções dicotômicas de pureza/impureza, superioridade/inferioridade. Relatos de viagem que resultaram em obras como as de Franz Post e Hermenegildo Bustos servem de matéria-prima para a historia natural, iluminista e eminentemente eurocêntrica. Esse outro olhar, porém, não queria dizer que fenômenos da natureza fossem melhor vistos, conforme notou em "As Palavras e as Coisas", Michel Foucault, pois apenas partia de um novo campo de visibilidade. Para Carl Linné, expoente da história natural nascida na França, o homem americano era descrito como "cor de cobre, colérico, ereto, de cabelo negro, liso, espesso, narinas largas, semblante rude, barba rala, obstinado, alegre e livre, pinta-se com finas linhas vermelhas e guia-se por costumes". O europeu era governado por leis, o asiático por opiniões e o africano pelo capricho, nas palavras do cientista cuja sistemática foi combatida pela Igreja que não aceitava que alguém tivesse esquematizado a obra de Deus e por seus pares que consideravam seu criacionismo retrógrado. De fruto da criação divina a objeto da ciência, o homem de Linné está presente na obra de Rugendas ao retratar o brasileiro branco, de cor, negro e índio. Maravilhado pela diversidade, nem por isso o artista compreendia a diferença sem se pautar pela idéia de inferioridade e superioridade racial. Seu foco eram "os homens inferiores", que encontrava pelas ruas do Rio. É o darwinismo que, mais tarde, daria uma lógica para sistematizar "o que até então se oferecia como uma miríade de peças de um grande catálogo", afirma Silveira, referindo-se à produção da história natural recolhida pelas expedições ao Novo Mundo. O darwinismo floresceu com a euforia cientificista e encerrou o século XIX conferindo aos cientistas a responsabilidade pelo futuro. Desembarcaria no Brasil em algumas companhias, disposto a influenciar uma intelectualidade "empenhada em construir uma narrativa identitária, em que o Brasil figurava como um país manqué, pensado pela 'lógica da falta'". O conde Joseph Arthur de Gobineau foi uma dessas ilustres companhias, que esteve no país de 1869 a 1870, representando o Ministério das Relações Exteriores da França, um dos pais do racismo científico oitocentista.

"O europeu era governado por leis, o asiático por opiniões e o africano pelo capricho", afirmava o francês Carl Linné

O diplomata fez jogo duplo, fechando as narinas ao muito que o desagradava nesta sociedade tropical para, enquanto nutria grande amizade por d. Pedro II, empenhar-se em campanha pela migração européia ao Brasil, deslanchando estratégia oficial em busca de melhorar a raça brasileira por meio da miscigenação com homens brancos. Ocorreu, então, a primeira trapaça pregada pela sociedade dos trópicos brasileiros à inteligentsia, possivelmente causada pela postura eugênica dos imigrantes, como notaria Silvio Romero. "Todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas idéias", diz Silveira ao repetir as idéias do crítico sergipano, para quem no Brasil se vivia a formação de um povo novo, composto por negros, índios e brancos e, em menor dose, por italianos e alemães. Estes, porém, haviam colocado um problema para o país, no entender de Romero, segundo nota o autor de "A Cura da Raça": Os "quistos étnicos" no sul do país seriam "um risco à unidade nacional", já que não se misturavam à população local, sem ajudar os brasileiros "na sua evolução racial e cultural". Por isso, intelectuais passaram a pregar o limite à imigração, ao mesmo tempo em que médicos passavam juristas nas escalas de valores da sociedade brasileira e homens como Euclides da Cunha e Monteiro Lobato, ao voltarem seu olhar ao brasileiro do interior do país, sucessivamente mudaram o foco para a expectativa de cura, diz Silveira. O historiador não poupa qualquer entendimento politicamente correto que se dê à obra de ambos. Cunha, por qualificar de prejudicial a mestiçagem e preocupar-se com suas conseqüências - em última análise, a degeneração do povo brasileiro. E Lobato, "nos contos de 'Urupês', no início da carreira de escritor, deixa claro seu entusiasmo pelos ideais higienista-eugenistas, para depois afastar-se do paradigma 'racialista', quando o Jeca a ele se apresenta como incurável, para depositar esperanças no sanitarismo e culpar o meio pelo atraso em que vivia o Brasil". O olhar voltado para o meio e não para a raça não tardou a identificar o Brasil como pátria da sexualidade, desregrada e imoral. Aos olhos dos cientistas sociais, isso não passou despercebido, inclusive do intelectual que é marco da decretação da morte do paradigma eugenista, o pernambucano Gilberto Freyre, em "Casa Grande & Senzala". Antes disso, Lima Barreto já fizera ferrenho contraponto às idéias de "Problema Vital" de Lobato, como salienta o historiador. "Mas o sociólogo Freyre não só critica o arianismo que marcava amplos setores da intelectualidade brasileira como olha o país de modo dramatizado e sugere uma narrativa sobre a identidade nacional que teve papel relevante, dado o contexto em que surgiu", avalia Silveira, que traz para o centro dessa discussão o discurso médico elaborado em seu Estado, o Rio Grande do Sul, tantas vezes e por tantos invocados como caso à parte na federação brasileira. Tal é o mito que o autor busca derrubar, apontando o imaginário que deu colo a esse pensamento e traçando pontos com o pensamento que se desenvolvia entre intelectuais do país do final do século XVIII até o Estado Novo. Mas o que o Estado Novo tem a ver com eugenia e higienismo? "A idéia da construção do Brasil moderno, o estímulo à prática esportiva e outros aspectos relativos à política imigratória fazem a manutenção desse paradigma, ainda que colocado em xeque pela busca de motivos telúricos para representarem a identidade nacional e o olhar mais simpático da figura do mulato", diz o autor. É Foucault, "um dos mestres da suspeita", que o levou à escrever "A Cura da Raça", interessado em analisar o discurso do higienismo e eugenismo com vistas ao conceito de biopoder.