Título: Com a morte na alma
Autor: José Castello
Fonte: Valor Econômico, 25/11/2005, EU & FIN DE SEMANA, p. 4;5;6
Literatura Adélia Prado lança livro sobre o desamparo e a eterna busca do aconchego materno
Uma leitura leviana leva a crer que "Quero Minha Mãe", o novo livro da poeta Adélia Prado, trata da luta contra o câncer ou da hipocondria. Em prosa poética, com 31 capítulos breves - alguns não passam de uma página, ou até de um parágrafo curto -, o livro trata muito mais que isso: aborda o desamparo. "É um livro sobre a orfandade", diz Adélia, ciente de que ao autor também escapam os melhores segredos de sua escrita. "'Quero minha mãe' é o que falam criancinhas e as pessoas na hora da morte. É o que falamos a vida inteira: 'Quero proteção e sentido'", prossegue a escritora mineira de Divinópolis, que completa 70 anos dia 13. Mesmo em busca de um sentido, tudo o que Adélia encontra são pedaços de sentido. Será mesmo um romance? Não se sabe. "Quero Minha Mãe" dissolve os fundamentos da grande narração no bolor difuso da palavra só balbuciada. Faz da prosa gagueira. Os capítulos não trazem numeração, as frases e parágrafos são curtos, ofegantes. O ritmo arfante da prosa de Adélia se manifesta, ainda, nas quebras bruscas, nas elipses angustiantes, nos saltos no tempo. Se Adélia se interessa pelo tema da hipocondria, é só porque nela se metaforiza algo essencial à condição humana. A personagem Olimpia sofre da intuição de uma doença grave. O livro relata o modo vacilante como enfrenta esse temor. Mas não é assim, como em geral definimos hipocondria, como mania mórbida, que Adélia se interessa pela doença. Ela a toma como sinal de nossa condição. "Nascemos órfãos, hipocondria, doença geral ou imaginária, são apenas detonadores. Trazem à luz nossa dramática condição. Só não somos trágicos porque há caminhos." Para Adélia, a poesia, como exercício espiritual, eleva e isso independe de seu conteúdo. "É forma pura, não enredo, não é assunto. Não trabalho com aspectos bestiais, ou sublimes. Escrevo sobre o humano, onde tudo está." Poesia em prosa, ou prosa poética, essas classificações não a interessam. Adélia reafirma o exercício da poesia como uma epifania - manifestação do divino. Em vez de orações, ou de cânticos, ou de línguas estranhas, o poema. "A poesia rasga, ou desvenda, porque é naturalmente epifânica", justifica. "É isto o salvífico [o que traz ou produz salvação], não a coisa ou o assunto." Veja-se o caso de Olímpia, a personagem de Adélia, uma mulher que luta para se simplificar enquanto enfrenta o medo da morte. Debaixo do chuveiro, em plena madrugada, ela começa a gargalhar. Alegria, ou pavor? A ameaça do câncer a ronda e a tira de si. Mais tarde, ultrapassado o terror, ela se põe a rememorar sua vida. Essas lembranças são o livro. "Quando já estava doente e não sabia, comecei a me sentir suja, muito suja, com precisão de expelir uma coisa que figurava uma bola preta me empesteando", diz a personagem. Doença real, ou medo? No desespero, ela trata de procurar Elza Mirtes, uma mulher que cura com as mãos. "O que lhe aconteceu?", pergunta. "Só um medo enorme, só isto e uma aflição que não me dá sossego." É da aflição, também, que Adélia tira sua escrita. Um bom nome para a hipocondria: aflição. Ela move o medo do corpo e o eleva, ou rebaixa, para uma esfera mais forte: a das crenças. Depois de ouvi-la, Elza Mirtes lhe prescreve um tratamento imprevisível: "Você precisa perdoar sua mãe", diz. Tomada pela lembrança da mãe, Olímpia medita: "Cinqüenta anos de sua morte e pela primeira vez me sentia a um passo de minha mãe, quase a tocava." Então, para além da hipocondria e do próprio câncer, a mãe, como sintoma de uma vida. Olímpia ainda era menina quando ajudou a mãe a morrer. Mulher feita, transformou-se em "uma comedora de livros". As leituras a levam a concluir que "a realidade é horrorosa". Mas logo se corrige: "Bem horrorosa, no sentido de formidável também". Em contraste com o que lê, reconhece sua vida pequena, limitada. "O corpo me limita, a pele, a casa, o quarto, a roupa, os óculos, o sofrimento de dona Luizinha que não entende eu não comparecer às suas bodas de ouro." É nesse corpo oprimido por tantos limites que a hipocondria se instala, como sinal de algo maior. Um sintoma não de uma doença, mas de algo que lhe falta. Como pano de fundo, repetindo o que se passa em todos os livros de Adélia, a presença contínua de Deus. Presença ambígua e perturbadora, é verdade. Nada da rigidez das grandes teologias. É Olímpia quem diz: "Bajulo Deus, tenho o rabo preso com Ele, o que me impede de voar. Como posso alçar-me com Ele grudado à cauda? Uma esquizofrenia teológica", diz. Mas em nenhum momento a personagem perde de vista a ilusão que sustenta sua crença. "Creio na ressurreição dos mortos, aceito e confesso o absurdo que me salva." Reconhece, ainda, suas limitações: "Cuido de não achar isso ou aquilo, minhas próprias dificuldades me toldam a percepção". Rememora, então, uma viagem ao Peru. "Na volta tive depressão, por causa das múmias, uma delas com todos os dentes", afirma. A experiência da viagem ainda a esmaga. Mas a imensidão dos Andes também a ajuda a se ver com nitidez. "Olhava tudo de fora e minha culpa diminuía, nitidamente percebendo minha condição de criatura." Depois de visitar Cuzco, ela se pergunta: "Víramos uma realidade, fendera-se uma cortina. Víramos o quê?" Essas dúvidas levam Olimpia ao sentimento de orfandade, de desamparo, que a autora remedia com a literatura. Às vezes, a poesia de Adélia é classificada de sentimental. Mas isso não a perturba. "O único dique da arte está na sua própria natureza, que é a forma", diz. "O resto são diferenças de temperamento, assunto para a psicologia e não para a literatura." A seu ver, é a construção deste dique que forma o estilo pessoal. Mas isso não é uma escolha. É uma escuta. "O trilho da obra vem com ela, não me cabe escolhê-lo." Quanto aos sentimentos, Adélia não cogita excluí-los. "Quem sataniza os sentimentos como pragas da literatura está no ofício errado, porque arte se faz com sentimento", afirma. "Sentimentalismo e pieguismo, estes sim, são alienações, formas infantis de lidar com a coisa, são pragas, sim." Daí a grande atenção pelo real, a verdade e a paixão pela vida que norteiam sua escrita. "Não tenho medo do sentimento, caminho nele tranqüila, mesmo porque, sendo a palpitação da vida, é mão única para a arte", diz. Poeta consagrada, Adélia se sente à vontade em sua prosa. "A arte acontece na poesia e por causa dela, inclua aí o livro de prosa." Sem preocupar-se com questões de gênero, segue seu caminho. Escreveu um belo livro porque não se afastou de si. Poesia ou prosa? É o ritmo das palavras que define isso. Tudo vem das palavras.