Título: "Os militares concluíram o planejado"
Autor: Maria Inês Nassif e Paula Simas
Fonte: Valor Econômico, 25/11/2005, EU & FIN DE SEMANA, p. 12-19

Leia a seguir os principais trechos da entrevista do general Ivan de Souza Mendes. Valor: Os militares saíram do poder no momento certo? Ivan de Souza Mendes: O período militar foi um período de transição, muito importante, que felizmente conseguimos concluir. Hoje se fala que foi um período de força. Mas os militares concluíram o que foi planejado por eles, que era restabelecer a democracia no país. Em 1964, caminhávamos para uma bagunça danada. A Revolução foi para afastar os comunistas e voltar à democracia - e entregamos o país, como planejamos. Não conheço casos assim, de outros países onde os militares tiveram o poder e o entregaram. Valor: Passados tantos anos, o senhor ainda avalia que existia mesmo um risco de tomada de poder pela esquerda? Mendes: Sempre houve conspiração da esquerda e sempre foi muito forte. As Forças Armadas responderam a isso: quando os militares viram que a situação apresentava risco, interferiram, e tiveram que dar duro. Não se pode comparar os excessos ocorridos no Brasil com o que aconteceu na Argentina e no Chile. Nesses países, a intervenção militar foi uma barbaridade. Na Argentina talvez tenha sido pior por causa do número de pessoas atingidas. O Chile foi duríssimo também. De maneira muito mais suave nós limpamos o terreno, extirpamos os excessos das esquerdas. Valor: Se a esquerda representava tanto perigo, porque foi tão fácil vencê-la? Mendes: É que foram muito incompetentes. Não tinham base militar para fazer uma ação militar e não tinham preparo. Os comunistas acharam que com meia dúzia de conspiradores, com meia dúzia de linhas-duras deles, iriam tomar o poder e não largariam mais. Uma coisa desse tipo precisa de preparo de opinião pública, preparo de grupo. Avaliaram mal, erraram. Trabalharam completamente errado. Os comunistas tiveram seus linhas-duras, e foram muitos. Os nossos a gente tirou fora. O que aconteceu com os comunistas é que se excederam e num certo momento quebraram a cara; nós, não. Valor: A disposição de entregar o poder não era de todo o Exército, mas de um setor do Exército do qual o senhor fazia parte? Mendes: Não era um setor do Exército, era a opinião do Exército. Nunca há uma unanimidade, mas a opinião majoritária do Exército foi a que prevaleceu desde o começo. Eu participei dessa história. Eu era muito ligado ao general Geisel e nossa preocupação era de o Brasil virar uma bagunça, a de que o país se descontrolasse. Valor: E nos preparativos da Revolução, o senhor estava com Geisel? Mendes: Mantive contatos com ele quando quando fui servir em Mato Grosso. Voltei de lá no começo de 1964 e estava em trânsito nas vésperas da Revolução. Já no Rio, procurei o general Geisel e disse: "Olha, estou aqui, e às suas ordens, estou vendo que a coisa aqui está preta". E ele disse: "Está". Em contato com ele, acompanhei o eclodir da Revolução. Participei já do fim. Eu tinha um fusca. O carro tinha ficado aqui no Rio com a minha filha, e o usei para acompanhar o general Geisel. Ele não tinha automóvel. Valor: Quando o senhor chegou ao Rio já pegou a conspiração na expectativa de uma adesão do general Castello Branco? Mendes: O clima era de expectativa, sim. Castello sentia que a situação do Brasil estava fervendo, mas resistia. Percebi isso quando cheguei: ele queria preservar a continuidade democrática - a paixão dele foi sempre esta. O grupo do general Geisel, ao qual eu pertencia, fez algumas reuniões com Castello. Ele era um homem de muito prestígio dentro do Exército e soube se preservar para a eclosão da Revolução militar. Ele era sempre muito discreto, sempre disse que não era um revolucionário, que não queria se comprometer - mas eu achava que na hora certa ele ia aderir. Valor: E qual foi a hora certa? Mendes: Nos últimos dias. Valor: O senhor acompanhou estas conversas? Mendes: Algumas. Dias antes da Revolução, nós nos reuníamos sempre em casas diferentes. Já no dia 1º de abril, fizemos uma dessas reuniões numa casa no Morro da Viúva. Estávamos reunidos e achamos que tínhamos que mudar de lugar, mas ninguém sabia pra onde ir. Então eu disse: "Olha, se vocês quiserem um lugar tranqüilo podem ir lá para casa". Como estava servindo em Mato Grosso e minha família tinha ficado no Rio, ninguém sabia que eu já estava por lá. Eu era tenente-coronel nessa época. Fomos para a minha casa, na rua Belford Roxo. Foi de lá que o Castello saiu, com a Revolução já definida, e foi para o Ministério da Guerra. Ele desceu fardado. Quando saiu na rua, já na tarde do dia 1º, foi ovacionado por populares. Valor: O senhor foi nomeado prefeito de Brasília já nos primeiros dias da Revolução? Mendes: Quando acabou a Revolução, eu me apresentei ao general Geisel, que me disse: "Você vai para casa descansar e volta amanhã". Eu já estava há duas semanas em claro, mas não queria dormir, não fui embora. Fiquei por ali, pelo quartel-general, no nono andar, no gabinete do ministro. O general Orlando Geisel, irmão mais velho do Ernesto, estava procurando um chefe de estado-maior para ele, que havia sido designado comandante da Vila. Um dos chefes perguntou se eu não aceitaria ser o chefe do estado-maior do Orlando Geisel. Eu disse que sim. E lá fui eu no meu fusquinha, de noite, para a Vila Militar. Fiquei lá poucos dias - até que o general Orlando Geisel me chamou e disse: "Você vai ser prefeito de Brasília". Brasília tinha uma prefeitura militar, que era um órgão administrativo do Exército, e eu pensei que era pra este lugar que eu estava sendo nomeado. E ele disse: "Não, você vai ser prefeito da capital". Fiquei pouco mais de um mês, porque só podia assumir a prefeitura interinamente por esse período. O Castello, já nomeado, escolheu Plínio Cantanhede e eu voltei para minha função militar. Fiquei um tempo no gabinete do Castello e depois fui para o Peru, como adido militar. Valor: Quando o senhor foi comandar a Região de Belém? Mendes: Já fui como general. Foi o meu primeiro comando. O Geisel já era presidente e me mandou para lá. Praticamente, fiz o encerramento administrativo das operações contra a guerrilha do Araguaia porque queriam que tudo ficasse no maior sigilo, que aquilo não aparecesse. Queriam esconder aquilo para sempre, mas não deu. É o mesmo que esconder o sol com a peneira. Quando cheguei, a guerrilha já estava quase encerrada. Eles [os militantes do PCdoB] tentaram fazer guerrilha e ocuparam a região. Uma área extensa. As operações no Araguaia foram feitas não pela Região, mas diretamente pelo Centro de Informações do Exército (CIE). No comando do ministro do Exército, com ordens diretas do presidente. Era uma missão secreta. Valor: Por que o Exército não dá sua versão do episódio? Mendes: Foi por isso que eu concordei em participar daquele livro do CPDOC, para contar. Porque está tudo escondido, um mistério danado. O Exército sempre teve a preocupação, que eu acho errada, de negar. Como se aquilo não tivesse acontecido. Valor: O SNI centralizava as informações? Mendes: Não, isso também acontecia no CIE, que era subordinado diretamente ao ministro do Exército. E esta parte da atuação do CIE foi muito fechada. Valor: Isso quer dizer que foi o general Orlando Geisel, ministro do Exército de Médici, quem comandou a operação de combate à guerrilha do Araguaia? E o general Milton Tavares, o chefe do CIE, a coordenou? Mendes: O general Milton Tavares coordenava as ações e passava tudo direto pro ministro. Valor: Os relatórios da guerrilha ficaram no SNI ou no Exército? Mendes: No Ministério do Exército. Valor: Foram destruídos? Mendes: Acredito que a maior parte, sim. Valor: Como se decide que um assunto é sigiloso? E há assuntos que serão sempre sigilosos e que jamais vão aparecer para a história? Mendes: Um dia, sempre aparece. O governo tem suas normas para certos assuntos. Isso, sobretudo na parte militar. Existe a preocupação de preservar uma informação, mas se ela se superpõe ou corre em paralelo com um assunto político, isso fica mais difícil. Valor: O senhor acha que as ações armadas da oposição retardaram a abertura?

"Eles (os linhas-duras) eram malucos. (...) Mas acima dos linhas-duras estão aqueles que têm visão mais longa. Por sorte, foi nossa opinião que prevaleceu"

Mendes: Foi o grande erro dos comunistas, segurar uma guerrilha que não tinha condição de vencer. Eles não tinham força. Não era a opinião da sociedade, era a de um pequeno grupo. A guerrilha do Araguaia foi uma situação em que os comunistas queriam mesmo assumir o poder para fora, para a China. Não queriam simplesmente assumir o governo: queriam o poder na mão deles, queriam tomar o poder de qualquer um - se não fosse deles o poder, eles arrebentavam. Eles tiveram muita coragem. Enfrentaram as Forças Armadas, que foram surpreendidas - no começo levamos paulada de todo lado. Não foi fácil, não. Valor: Mas houve baixas militares? Mendes: Sim, mas não muitas. Valor: Qual era o papel do coronel Curió na última operação de combate à guerrilha? Mendes: O Curió era o homem da parte operacional, de campo, lá no Araguaia mesmo. Ele tinha muita força lá dentro. Era subordinado ao Milton [Tavares, comandante do CIE]. O Curió teve força porque era o homem de ação. O homem era ele, embora não fosse o mais graduado. Ele tinha uma grande capacidade de ação. Não tinha medo. Não tive muito contato com ele, na época da guerrilha. Quando estava no comando de Belém, fui pessoalmente apenas umas quatro vezes na região de Xambioá. Valor: Houve uma decisão estratégica de que as pessoas no Araguaia não deveriam viver? Mendes: A informação talvez seja esta, mas eu não sei. Sei que houve uma guerra, e na guerra se mata e se morre. Valor: Eliminar fisicamente os focos de guerrilha era uma decisão estratégica, um pré-requisito para a abertura? Mendes: Para limpar a área. É possível. Mas no Araguaia houve excessos dos executores, sem dúvida. Mas foram de muito poucos. Valor: Mas os militares não foram para a região com ordens de riscar a guerrilha do mapa? Todos os que foram presos nas primeira e segunda campanhas militares estão vivos; na terceira campanha, todos foram mortos. Mendes: É possível isso. Senão, não acaba nunca. Chega uma hora, a guerra tem que terminar. Mas acho que foi uma decisão mais da linha dura do que do comando. Valor: A maior parte da terceira campanha aconteceu no governo Médici e Orlando Geisel era o ministro do Exército. Ele não saberia de tudo o que aconteceu lá? Mendes: O Orlando mesmo, não sei. Quem sabia de tudo era o Milton Tavares. Você pode acusar o general Orlando de ter consentido e dado uma latitude de ação ao general Milton, maior do que ele devesse receber. Valor: E o presidente Médici? Mendes: O Médici era o grande responsável. As decisões mais duras eram do Médici. O Médici foi apoiando o pessoal da linha dura. Não era ilimitado isso, não. Ele sabia também até onde devia ir. E tinha que se dar muito bem com o general Orlando. O general Orlando foi ministro do Médici, e quando foi escolhido foi uma surpresa danada, pois ele era castellista. A corrente que apoiava o Médici não queria os castellistas, inclusive queria se ver livre do Golbery. Quando o Médici chamou o Golbery, houve gente que ficou furiosa. Discordavam da atuação do Golbery. O Golbery era homem de muita coragem, mas resolvia a coisa com a cabeça, não pelo pau. Valor: Então, se houve alguma ordem específica de extermínio dos guerrilheiros no Araguaia, o Médici saberia. Mendes: Se não sabia, estava dentro da orientação dele. O que se fazia era o que ele mandava. Ele não abria mão de ser comandante. Ele tem responsabilidade pelos excessos cometidos no governo dele, pois no mínimo ele consentiu. Sabendo ou não. Valor: Seria o caso da repressão à guerrilha urbana e rural nesse período? Mendes: Estou convencido de que houve excesso - mas, neste caso, se não houvesse não acabava nunca. [Os guerrilheiros] eram rapazes determinados, rapazes de valor, eram moços - na maioria, moços. Valor: Já no governo Geisel, teve um episódio também que os militares resolveram suprimir da história, o chamado "massacre da Lapa" [bairro de São Paulo]. Foram mortos todos os dirigentes do PCdoB que se reuniam numa casa na Lapa. Isso foi em 1976. Mendes: Sempre ouvi falar do negócio da Lapa. Na ocasião, a tese era acabar com eles, mesmo. Só podia ser. Ou a gente acabava com os comunistas, ou eles acabavam com a gente. Se déssemos um espaço para eles, tomavam conta. Valor: Orlando Geisel era mais duro que o irmão? Quando ministro do Exército, poderia, por exemplo, ter decidido pelo extermínio dos guerrilheiros do Araguaia? Mendes: Acho que não. O Orlando tinha mais sensibilidade política que o Ernesto. Eles eram muito parecidos no modo de pensar, mas o homem de ação era o Ernesto. O Orlando conduzia bem a parte política. Isso, desde o governo Castello. De vez em quando, os irmãos divergiam, até uma vez eu participei de uma discussão. O Ernesto queria uma coisa mais dura e o Orlando queria maneirar, achando que as circunstâncias não permitiam. Isso já no governo Geisel. Valor: Foi um período de muita resistência à democratização. Mendes: Sim, mas a preocupação do Exército como um todo era de assegurar a plena redemocratização. A ação dos principais chefes era sempre nesta direção. Não estou dizendo que eram todos, não. Alguns queriam tomar conta e arrebentar os outros. Mas prevaleceu nossa opinião, a opinião dos mais equilibrados, que eram moderados, aqueles que não tinham gosto pelo poder. Valor: Como agia operacionalmente a linha dura no período Geisel? Era nos "excessos", como no caso da morte do jornalista Vladimir Herzog, ou existia algum outro tipo de embate? Mendes: Era basicamente isso. Eram pessoas que não se conformavam com a linha democratizante do governo. O grosso era o pessoal de baixo, de operação, da ação, embora também existissem os linhas-duras de cima. O general Ernesto Geisel, como presidente, teve muita habilidade para conter esse pessoal. Nos lugares onde isso não foi possível, ele botou o pau pra quebrar. Chegava num ponto que ele não admitia e pronto. Valor: Esses grupos estavam abrigados basicamente nos DOI-CODIs? Mendes: Os DOIs eram órgãos para obter informações. Os jornais saem com 99% das informações importantes. É só saber ler. Mas nem tudo: um mínimo escapa deste controle. Os DOIs, para obter informações além dos jornais, iam buscá-las, mesmo se fosse preciso brigar. Quando o pessoal de esquerda estava com muito força, querendo assumir o poder, essas forças cresceram dentro do governo. Até pelo fato de que a guerrilha não acaba a não ser que você mate - você não pode acabar com comunista, só matando. Eles estão aí, continuam a existir, estão até no governo. É preciso tolerá-los democraticamente, mas, saiu da linha, descumpriu a lei, pau neles. No caso do Araguaia, o Exército teve que buscar informações, senão não saberia como agir. Valor: Os CODIs tinham uma ação mais dura. Mendes: Sim, e não fugiram do controle, mas se excederam em alguns momentos. Valor: Os CODIs eram compostos pelo pessoal linha-dura do Exército, Marinha e Aeronáutica e das polícias militar e civil. Era um núcleo duro? Mendes: Mas não era só isso. Os CODIs eram de ordem estratégica. Quem atuava mesmo eram os DOIs. Os CODIs ficavam de cima, coordenando. Valor: O núcleo duro estava no DOI?

Quando a linha dura pretendeu estender o mandato de Figueiredo, Mendes viu o golpe no ar e disse que resistiria, com a adesão da maioria dos oficiais

Mendes: A maioria estava. O DOI era o órgão de execução, era quem fazia. Valor: Como o núcleo duro foi desarticulado? Mendes: Eles eram malucos, não tinham uma avaliação precisa das conseqüências do que estavam fazendo. Faziam simplesmente o que queriam. O Geisel, com toda a dureza dele, tinha a compreensão da evolução do processo político. Valor: O fato de os linhas-duras estarem abrigados nas áreas de repressão política não pode ser interpretado como uma decisão estratégica? Precisava de gente dura para cumprir uma missão? Ou eles simplesmente abusaram o tempo todo de seus poderes? Mendes: Em uma faixa de atuação, são os duros que têm de agir. Mas acima dos duros estão aqueles que têm a visão mais longa, mais distante dos duros. Por sorte, nossa opinião foi a que prevaleceu. Valor: Como eram esses grupos, como atuavam nos governos Geisel e Figueiredo? Mendes: Cada um tinha um modo de pensar, um modo de ver, uma capacidade de tomar decisões, e na hora de tomar decisões agia de acordo com o que pensava. Existia, então, o que se chama de linha dura, um núcleo menor de oficiais que tinha receio de que os comunistas tomassem de novo o poder e resistia a qualquer ação em direção à redemocratização. Valor: Eles estavam no Alto Comando? Mendes: Em todos os níveis. Aliás, a linha dura se manifestava mais nos níveis mais baixos. O Alto Comando já era muito cristalizado. O militar, para chegar ao Alto Comando, tinha que ser aprovado antes pelos altos escalões. Na época, a tendência do Exército, a orientação, era a de assegurar a democratização. Eu, quando entrei no Alto Comando, tinha essa idéia firme na cabeça de que já devíamos restabelecer a plenitude do regime democrático. Valor: No governo Figueiredo, os militares resistiam à perspectiva de vitória da oposição no Colégio Eleitoral, mas igualmente resistiam a uma vitória de Paulo Maluf, não é? Mendes: É verdade, o Exército não queria o Maluf que, embora não fosse ligado às esquerdas, era um homem que simplesmente queria o poder para ele, para a corrente dele. O Maluf era um exemplar típico do político de direita. Valor: Houve tentativas de prorrogar o mandato de Figueiredo? Mendes: Um grupo pequeno de companheiros do SNI achava que o Figueiredo devia ficar mais dois anos - num mandato que já era de seis anos, um absurdo. Isso ficou só na cúpula. Quando senti o cheiro dessa brincadeira, avisei os meus colegas: "Não me venham com essa, que eu sou contra e vou agir contra". Avisei poucos, porque não sabia o que os outros pensavam. O Exército não toleraria, na minha opinião, o recuo na linha de democratização. A opinião do Exército era realmente pela redemocratização e esse grupo não conseguiu nada e acabou se dissolvendo naturalmente. Valor: A tentativa de prorrogar o mandato de Figueiredo foi do general Newton? (Newton Cruz, então chefe do SNI) Mendes: O Newton pagou pelo fato de terem dado força demais pra ele. Valor: Ele não tinha estatura política? Mendes: Não. O Newton, como general de brigada nessa época, quis fazer umas coisas que estavam acima dele. Mas não pôde fazer porque os superiores não concordaram. O próprio Figueiredo era contra. Entrei em algumas ocasiões para deixar claro que eu era contra e iria brigar contra. Era um grupo muito pequeno. Desistiram porque não iam ter apoio entre os chefes e os subordinados. Valor: Geisel foi muito importante naquele momento, para garantir a eleição e posse de Tancredo. Como ele atuou? Mendes: A força moral dele dentro do Exército ajudou muito, mas o desejo dos militares era de que as coisas se normalizassem. Eles não queriam retrocesso. Os que resistiam constituíam um grupo forte, mas não o suficiente para virar a mesa, o jogo. Valor: Esse período foi o único em que o general Geisel e o general Golbery se dividiram, não foi? O general Golbery queria o Maluf e o general Geisel fez opção por Tancredo. Mendes: Não foi bem assim. O malufista era o Heitor de Aquino, seu auxiliar. O Heitor era um rapaz muito esperto, muito capaz e tinha muita influência com o general Golbery, mas a ação dele tinha limite. O Geisel nunca esteve em contraposição ao Golbery, nem nessa situação. O Geisel confiava nele e precisava dele,quando a questão era política. Valor: Por que o senhor foi escolhido por Tancredo para ser o chefe do SNI? Mendes: Acho que o Tancredo me procurou por causa do meu nome. Fui nomeado chefe de informações sem nunca ter trabalhado especificamente com isso. Eu trabalhava com informações nos comandos que exerci. Mas sempre me interessei, li um montão de livros. Quando fui convidado, não tive receio do desafio. . Valor: O Tancredo chegou a conversar com o senhor sobre que ele queria fazer nesta área de informações? Mendes: Conversou, mas em linhas muito gerais. O Tancredo não sabia nada, não tinha idéia. A preocupação dele era colocar na área de informações uma pessoa em quem pudesse confiar. Valor: A área militar esteve calma no governo Sarney? Mendes: Há sempre um grupo que quer voltar, mas o Sarney teve habilidade. Recebeu o Ministério de Tancredo. O Tancredo escolheu os nomes e me convidou para chefe de informações. Eu também mal o conhecia. Assumi e, pouco mais de um mês depois, Tancredo morreu. Os chefes militares, portanto, foram escolhidos por ele. Mas daí o Tancredo morreu. Eu me apresentei ao Sarney e disse: "Presidente, o cargo está em suas mãos". Ele disse: "Não, o senhor está confirmado". O Sarney tinha mais ligação com o Leônidas [Pires Gonçalves, seu ministro do Exército], que conhecia antes do seu governo. Mas ele teve a habilidade de se apoiar nos militares. Sentiu que seus chefes militares eram bem intencionados e sentiu força para conduzir as coisas. E foi muito feliz na coordenação política. Valor: Seu papel era abrir o SNI? Mendes: Eu era chefe do SNI quando houve a elaboração da Constituição, que decidiu dar acesso ao cidadão a toda a informação que tinha a seu respeito. Sempre fui a favor e não criei nenhum obstáculo. Valor: O senhor teve algum trabalho de conter o pessoal do SNI? Mendes: Eu os enquadrei, acho pelo menos que eu os enquadrei. De repente, pensei que enquadrei e não enquadrei nada. Quem saía da linha levava pau. Batia sem medo e eles não estavam acostumados com isso. Sempre fui muito leal com os subordinados, com os chefes, mas tinha uma linha de conduta: não admitia arrumação. Eu tinha muita liberdade de ação. Logo que assumi, me inteirei dos perigosos sem caráter, aproveitadores. Botei pra fora. Eram civis e militares. O SNI tinha militares que, se eu quisesse botar pra fora, devolvia para o Exército. Se não fosse militar, eu mandava embora. Fui com jeito no início, mas a partir de um certo ponto eram eles, ou eu. Resolvi enfrentar. Valor: E havia aqueles em que o senhor confiava... Mendes: Peguei uma turma em que eu confiava, que conhecia muito bem do Exército, e constituí meu estado-maior. Na ocasião, descobri que havia várias irregularidades feitas por um grupo de oficiais do SNI. Botei todos pra fora. E fiquei com pena, porque entre esses havia dois que não tinham nada, mas cometeram um erro bobo administrativo que eu tinha que enquadrar igual pra todos. Não mereciam, mas não deixei de botar para fora - e aí eles viram que eu agia, eu não tinha conchavo com grupos. Valor: O senhor ainda acompanha a política? Mendes: Não muito, porque dá muito trabalho. Leio o "Globo" e a "Folha de S. Paulo", às vezes "Veja". Não tenho tempo, nem dinheiro para ler mais que isso. Leio meus livros. Se a coisa piorar eu falo, mas já sou carta fora do baralho. Já passei dos 80 anos e agora tenho o direito de descansar. As pessoas que estão nas funções políticas e militares estão à altura das suas funções. Posso dormir sossegado. Acho que cumpri minha missão. O que as circunstâncias me levaram a fazer, eu fiz, eu acho que certo. Eu era um entre muitos. Então é isso.