Título: O general que voltou para casa
Autor: Maria Inês Nassif e Paula Simas
Fonte: Valor Econômico, 25/11/2005, EU & FIN DE SEMANA, p. 12-19

Entrevista de Valor - Ivan de Souza Mendes

"A Revolução foi feita para afastar os comunistas e depois voltar à democracia. Entregamos o país, como planejamos. Não conheço casos assim, países onde os militares tiveram o poder e o entregaram" " A tese era acabar com eles. Só podia ser. Ou a gente acabava com os comunistas ou eles acabavam com a gente " (sobre o "massacre da Lapa")

O general da reserva Ivan de Souza Mendes, 83 anos, atravessou na ativa o período da vida brasileira em que a política passava necessariamente pelos quartéis: a renúncia de Jãnio Quadros, em 1961, e a resistência militar à posse do vice-presidente João Goulart; o golpe de 1964; governos militares menos - ou mais - autoritários e um período conturbado de abertura política, marcado por intensas resistências à redemocratização, vindas da própria caserna. No primeiro governo civil pós-ditadura, foi o ministro-chefe do temido Serviço Nacional de Informações (SNI). Hoje está em casa. Cultiva família, livros, música e fala muito pouco do passado. Ri de si mesmo quando, na intimidade, diz que foi o araponga-chefe. A entrevista que ocupa as próximas páginas foi feita há três anos, parte de um levantamento de informações sobre a guerrilha do Araguaia. Naquele dia de 2002, o general, então com 80 anos, quebrou uma norma de conduta. Ele sempre foi econômico ao falar do passado. As horas em que repassou episódios do período militar e pinçou fragmentos do passado foram menos uma concessão à história do que à própria família: as três filhas e os oito netos insistiam para que ele registrasse os fatos dos quais foi testemunha e os momentos em que sua participação foi importante. "Eu era um entre muitos", disse. "Se a coisa piorar eu falo, mas já sou carta fora do baralho." O general estava mais à vontade do que de costume. Ainda assim, a conversa traz o carimbo de sua discrição. Evitou nomear personagens de episódios obscuros - exceção feita ao general Newton Cruz, chefe do SNI do governo Figueiredo, e ao já morto general Milton Tavares, linha-dura que ficou na história da repressão política do regime militar. Diversas vezes manifestou incômodo com a entrevista. Antes, apenas havia deixado sua contribuição ao Centro de Pesquisa e Documentação da FGV (CPDOC) - que possui o maior acervo de depoimentos e documentos do período militar -, mas explicou por quê: achava errada a posição do Exército, de negar fatos que tinham acontecido. Era uma forma de reparar, em parte, um erro da corporação. Mendes jamais saiu dõ quartel: lá esteve desde 1943, quando se formou na Escola Militar do Realengo. Foi como militar que assumiu o cargo de ministro-chefe do SNI, já no governo civil de José Sarney (1985-1989). Encarou eventuais passagens pela política como missões militares. No início do regime militar, em 1964, foi nomeado interventor na então Prefeitura de Brasília. Um mês depois, o general Castello Branco tornou-se presidente (1964-1967) e o convidou a permanecer. Rejeitou. "Não quero seguir a carreira política." Foi para a Casa Militar, onde o ministro era Ernesto Geisel; depois, adido militar no Peru. Voltou no governo Costa e Silva (1967-1969) e foi chefe-de-gabinete do ministro do Exército, Lira Tavares. No governo Médici (1969-1974), foi assessor de Geisel na presidência da Petrobras. Assumiu o primeiro comando, na 8ª Região Militar, em Belém, no início do governo Geisel (1974-1979), e fez a limpeza administrativa da área que havia sido palco da guerrilha do Araguaia. Comandou a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) e foi da Escola Superior de Guerra (ESG). Quando deixou o SNI, optou por se recolher à reserva. Recusou emprego na iniciativa privada. Por princípio, explicou. Sabia de muitas coisas, informações que poderiam privilegiar ou prejudicar pessoas. "Preferi ficar neutro", disse a Sônia Mendes, a filha que, incansável, coleta pedaços da vida do pai. Ao longo da conversa, o general emitiu algumas considerações aparentemente contraditórias. Mas se a entrevista for lida a partir da lógica daquela geração de militares, e especificamente daquele grupo - o dos "castellistas" - o pensamento do general torna-se cristalino. Parte de uma convicção: a de que em 1964 era eminente a tomada do poder pelos comunistas; a intervenção militar teria sido, assim, um contragolpe. E existia uma intenção: "A Revolução foi para afastar os comunistas e depois voltar à democracia. Nós entregamos o país, como planejamos. E não conheço casos assim como o brasileiro, países onde os militares tiveram o poder e o entregaram". Esse era, no entanto, o pensamento de um determinado grupo do Exército - aliás, Mendes só fala pelo Exército, não pelas Forças Armadas. Os castellistas achavam que a intervenção tinha data para acabar. A extrema-direita militar, a chamada linha dura, teria permanecido no poder se tivesse forças para vencer, internamente, o grupo mais liberal.

No governo Sarney, coube a Souza Mendes (à direita, na foto, com o presidente) desmontar a estrutura do SNI, que na época trazia uma enorme herança da linha dura

Mendes trata os momentos de endurecimento do regime pela ótica de seu grupo. Assim, admite que ocorreram "excessos" no período Médici, por ele atribuídos ao fortalecimento da linha dura, estimulado pelo próprio presidente. No momento em que o poder estava com os grupos moderados, eventuais endurecimentos são atribuídos a uma estratégia militar, cujo objetivo último era o de restabelecer a democracia. Em algumas ocasiões, no entanto, os excessos são vistos como um mal necessário: "Estou convencido que houve excessos, mas se não houvesse não acabava nunca." É dentro desses parâmetros que analisa a ação dos militares em Xambioá. A operação militar que exterminou a guerrilha do PCdoB - a última e vitoriosa, depois de duas tentativas fracassadas - aconteceu quase toda no governo Médici, mas se estendeu pelos primeiros meses do governo Geisel. Neste episódio, Mendes admite que tenha havido excessos nas ações de combate à guerrilha e as atribui ao presidente. "Ele tem responsabilidade pelos excessos cometidos no governo dele, pois no mínimo consentiu", disse. Indagado sobre o chamado "massacre da Lapa", ocorrido já no governo Geisel - quando foram eliminados, em São Paulo, quase todos os dirigentes do PCdoB que estavam no país e o até então único conhecido sobrevivente da terceira campanha do Araguaia, Ângelo Arroyo -, encarou o extermínio como estratégia militar. "Na ocasião, a tese era acabar com eles, mesmo. Só podia ser. Ou a gente acabava com os comunistas, ou eles acabavam com a gente", afirmou. Existe uma diferença entre ser linha-dura e ser simplesmente duro. Para Mendes, Médici estimulou a linha dura e promoveu um período do regime em que os excessos cometidos podem ser debitados na conta do governo por ele comandado. Geisel era "duro" porque rigoroso e por dispor de pouca cintura política quando se movia em direção a um objetivo, mas sua meta final era retirar os militares da cena política, explica Mendes. A luta do grupo castellista, ligado a Geisel, no seu governo e no seguinte, de João Figueiredo (1979-1985), foi contra a extrema-direita da corporação militar. "Eles eram malucos, não tinham uma avaliação precisa das conseqüências do que estavam fazendo. Eram uns linhas-duras, faziam simplesmente o que queriam. O Geisel, com toda a dureza dele, tinha a compreensão da evolução do processo político", relatou o general. Mas a linha dura desempenhou seu papel em momentos anteriores, quando houve o confronto com a guerrilha urbana e rural. "Quando o pessoal de esquerda estava com muita força, querendo assumir o poder, essas forças cresceram dentro do governo. Até pelo fato de que a guerrilha não acaba, a não ser que você mate - você não pode acabar com comunistas, só matando", disse. E concluiu: "Em uma faixa de atuação são os duros [entenda-se aí a linha dura] que têm que agir. Mas acima dos duros estão aqueles que têm visão mais longa. Por sorte, nossa opinião foi a que prevaleceu". Por essa lógica, não há incoerência no fato de Mendes ter apoiado o golpe de 1964 e ter exercido papel decisivo nos anos 1983/84 para evitar um retrocesso político. E foi o que aconteceu. No governo Figueiredo, quando a linha dura "com estrelas" tentava um golpe para prorrogar o mandato do último presidente militar e impedir que o colégio eleitoral se decidisse por Tancredo Neves, da oposição, ou por Paulo Maluf, a balança acabou pendendo para o grupo castellista. Geisel usou de toda sua ascendência moral para conter a corporação. Ivan de Souza Mendes - na ativa e, portanto, teoricamente com poder de comandar tropas - deu o murro na mesa. Numa reunião do Alto Comando em que o grupo da linha dura - ligado ao SNI, diz ele - jogou para os demais a hipótese de estender por dois anos o mandato de Figueiredo, Mendes sentiu o cheiro de golpe no ar e devolveu: disse que resistiria e que sabia contar com a adesão da maioria do oficialato. Os adversários recuaram. No governo Sarney, como chefe do SNI, coube ao general desmontar a estrutura do serviço de informações que, na época, trazia uma enorme herança do passado. Mendes demitiu e mudou o perfil do órgão. Manteve uma relação tão estreita com Sarney que, nas viagens presidenciais, era ele quem cuidava da burocracia. O presidente da Câmara, Ulysses Guimarães, que assumia a presidência na ausência de Sarney, ligava altas horas da madrugada para o guardião do Palácio. Durante os onze anos que se seguiram ao final do governo Sarney, o general fez o que prometeu a si próprio: exerce o "direito de descansar". Trocou a caserna pelo convívio com a família. Acompanha os lançamentos de livros de política, relê clássicos e adora poesias. A música clássica é outro prazer, que divide com a paixão pela obra de Chico Buarque de Holanda, o compositor popular mais censurado do período militar. Ao irmão jesuíta que lhe cobra rezar, explica que a música e a poesia o elevam ao estado de espírito que o religioso alcança nas suas orações. Aos filhos e netos, fala do dever cumprido.