Título: O jogo das brigas políticas estéreis
Autor: Fernando Luiz Abrucio
Fonte: Valor Econômico, 28/11/2005, Política, p. A4

Olhar de longe, como um estrangeiro, dá uma outra perspectiva à análise. O distanciamento favorece uma reflexão que consegue perceber melhor a medida das coisas. Depois de ficar quase uma semana no México, acompanhando apenas à noite o noticiário sobre o Brasil pela Internet, aprofundei minha convicção de que o país vive um momento de brigas políticas estéreis e que nos tem levado a um enorme esvaziamento do debate político. Comecemos pelo tão decantado embate entre o ministro Palocci e a ministra Dilma, que dominou as páginas da imprensa nas últimas duas semanas. De duas, uma: ou o governo Lula usou esta briga para camuflar os verdadeiros problemas, ou houve uma perda de tempo, uma vez que o centro da política econômica não terá nenhuma alteração consistente de rota - como mostrou a infeliz decisão do Banco Central -, e tampouco o presidente ajudou a consolidar a posição da equipe econômica. O governo Lula mostrou uma enorme dose de incompetência para lidar com este conflito, mas a oposição não deixou por menos. Ela perdeu a oportunidade para discutir efetivamente a política econômica, apontando seus problemas e qualidades, numa discussão aberta menos preocupada com a manutenção do ministro ou em defender as ações do presidente FHC, e mais centrada na reflexão sobre o que aprendemos em termos econômicos nos últimos dez anos. Afinal, há um consenso difuso de que algumas coisas devem permanecer e outras precisam ser modificadas, mas não se explicita, no meio político, o que tem de ser mantido e o que tem de ser alterado. Ou o discurso da mudança é um mero truque à Lampedusa para manter tudo como está? Para os que se cansaram da briga anterior, há uma nova, com lances de novela mexicana como os da briga entre os ministros de Lula. Só que esta última pendenga política é ainda menos importante para a melhoria das instituições públicas brasileiras. Trata-se do conflito entre os deputados federais - embora os senadores da oposição também tenham entrado histrionicamente nesta história - e o Supremo Tribunal Federal, acerca dos trâmites do processo de cassação do deputado José Dirceu. Mesmo que o presidente do STF, Nelson Jobim, tenha tido um comportamento bastante afoito ao longo da votação dos ministros, não me parece que a instância máxima do Judiciário esteja protegendo um político e/ou quebrando o princípio da independência entre os Poderes. O que o Supremo está fazendo é discutir as bases do direito individual de autodefesa, uma questão essencial à democracia em qualquer país. Cabe frisar: hoje são políticos petistas que lutam por estas garantias, ontem foram os de outros partidos mais à direita - e à época a esquerda ignorava completamente as virtudes do liberalismo político que hoje defende - e amanhã, sem querer rogar praga nem presságio, poderá ser alguém do PSDB ou do PFL. O que deve valer para um, deve valer para todos, diria uma máxima republicana - pena que o republicanismo esteja tão fragilizado na crise atual. O curioso é que quando o Supremo Tribunal Federal garantiu a instalação da CPI dos Bingos, a oposição fez louvações e mais louvações à sua decisão. Na verdade, já haveria elementos jurídicos condizentes com a legalidade democrática para cancelar uma série de ações ou mesmo embargar a famosa CPI do Fim do Mundo, uma vez que ela já fugiu, e muito, de seu assunto gerador, afora ter quebrado princípios básicos do direito de autodefesa. Mas neste caso os ministros do STF estão utilizando o bom senso político que em certas situações deve guiar esta instituição, a fim de evitar uma decisão que traria mais prejuízos à democracia do que a manutenção do teatro dos senadores em tal CPI.

Sociedade deve mudar o foco do debate público

O pior deste embate entre o Congresso - ou parcela dele - e o STF foi a proposta dos senadores oposicionistas de obstruir a votação do Orçamento federal. O conflito entre os Poderes deve ser resolvido com parcimônia e por intermédio de uma reflexão sobre o papel institucional de cada ramo, e não por meio de chantagens movidas por interesses políticos imediatistas que só acabam por prejudicar o interesse público. Iniciaremos a semana com uma nova discussão, esta sim voltada para uma reflexão institucional relevante. A PEC que propõe o fim da verticalização será o destaque da agenda dos deputados. Está em jogo a definição do funcionamento do sistema eleitoral e o Congresso poderá recuperar a centralidade neste debate, uma vez que a verticalização fora instalada por "decreto" pelo TSE em 2002 - aí sim uma interferência indevida do Judiciário naquilo que deveria caber ao Legislativo. Os dois partidos favoritos à disputa de 2006, PT e PSDB, colocaram-se a favor da manutenção da verticalização. A favor da PEC que a derruba, estão principalmente setores do PMDB e o PFL, outras partes essenciais do sistema político brasileiro. Há argumentos sólidos a favor das duas teses. Verticalizar o processo eleitoral poderia favorecer uma maior nacionalização partidária, com reflexos positivos para a governabilidade. Tenderia a ocorrer maior coerência ideológica dos partidos no Congresso, algo mais importante do que a coesão partidária alimentada pela cooptação dos cargos e verbas. Por outro lado, em razão da diversidade regional do país, amarrar as alianças entre as legendas poderia criar uma forma artificial de representação, comandada pela cúpula nacional das agremiações partidárias, a despeito e antes que o voto dos eleitores fosse depositado nas urnas. Para esta visão, a verticalização poderia ser uma intromissão centralizadora sobre a natureza federativa do país. Não é um interessante debate, caro leitor? Pena que os defensores da verticalização posicionem-se assim porque hoje são favoritos à disputa presidencial - e esperam que este mecanismo "obrigue" os outros partidos a se coligarem com eles -, ao passo que os opositores dela adotem esta visão para garantir maior poder de barganha - leia-se: cargos - nas chapas presidenciais e no jogo do caciquismo local. A sociedade brasileira precisa pressionar urgentemente a classe política para mudar o foco do debate público. Caso contrário, nossa novela política será pior do que as mexicanas que me divertiram no belíssimo e encantador país que visitei.