Título: Maratona eleitoral vai redefinir mapa político da América Latina
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Fonte: Valor Econômico, 28/11/2005, Internacional, p. A9

Democracia Doze eleições presidenciais e 13 legislativas ocorrem até o final de 2006

Ontem os eleitores no pequeno país centro-americano de Honduras foram às urnas para eleger o presidente, o Congresso Nacional e prefeitos. Normalmente, isso despertaria pouca atenção. Mas os hondurenhos deram a partida para uma maratona eleitoral latino-americana. Nada menos que uma dúzia de disputas presidenciais e 13 eleições legislativas acontecem até o final do ano que vem. Tendo como palco Brasil e México, os dois gigantes da região, e quatro dos cinco países sul-americanos de porte médio (veja tabela ao lado), as eleições determinarão as cores com que será pintado o mapa político da região nos próximos anos. Muitos observadores prevêem que a América Latina tenderá ainda mais para a esquerda. Isso é possível. Pela primeira vez, poderão ser eleitos um ou dois admiradores explícitos de Hugo Chávez - o presidente da Venezuela que atualmente se define como um "socialista do Século XXI". A despeito do grau de entusiasmo com que Chávez demonstraria sua satisfação com esses triunfos, qualificando-os de derrota para a influência dos EUA na região, as vitórias quase certamente seriam limitadas a países pequenos, Bolívia e Nicarágua. De modo geral, o cenário mais provável - para melhor ou pior -, é de continuidade. A esquerda moderada vem obtendo bons resultados na América Latina desde o fim da década de 90. Isso se deve em parte ao fato de o entusiasmo popular pelas reformas de livre mercado (que contiveram a inflação), defendidas pelo Consenso de Wa-shington (políticas macroeconômicas responsáveis, livre comércio, privatização e desregulamentação) ter sido comprometido por uma forte recessão em toda a região entre 1998-2002. Mas a esquerda moderada também avançou porque a democracia finalmente tornou-se hábito na América Latina e, com ela, a normal e saudável alternância no poder. Isso estimulou a esquerda a adotar políticas mais responsáveis. O resultado foi que, em vez de desmantelar as reformas dos anos 90, a maioria dos políticos da região manteve sua adesão a um novo consenso "pós-Washington", combinando (mais ou menos) políticas macroeconômicas responsáveis com maior ênfase em gastos sociais e algumas novas experiências de maior liberalização. Na maioria dos países, esse novo consenso deve sobreviverá ao crivo eleitoral. Isso porque as economias da região vêm surfando na onda de alta no preço de commodities e muitos dos atuais presidentes são relativamente populares. (Alejandro Toledo, do Peru, é exceção). Mas há muitos descontentes. Quatro latino-americanos em dez continuam pobres. Pesquisas indicam que dois conjuntos de temas de campanha serão os mais importantes nas mentes dos eleitores: primeiro, a demanda por empregos decentes aliada a um ataque à pobreza e às grandes desigualdades sócio-econômicas na região; e em seguida, preocupações com segurança e criminalidade, importantíssimas na Colômbia e em áreas da América Central, onde os conservadores tendem a se sair bem. As eleições serão decididas em torno dessas questões domésticas, e não por influência do confronto entre George Bush e Chávez, como afirmam alguns analistas. Uma tendência é a ascensão de novas mulheres. No Chile, Michelle Bachelet provavelmente terá de disputar o segundo turno das eleições, mas continua parecendo certo que ela assegurará um quarto mandato consecutivo para a coalizão Concertación, de centro-esquerda. Sua vitória poderá ajudar Lourdes Flores, uma conservadora, no Peru. Uma segunda tendência, já consolidada, é a de que a maioria dos vitoriosos nas disputas presidenciais serão relativamente fracos, não dispondo de maioria em Congressos fragmentados. Haverá "homens-fortes": parece certo que Chávez será reeleito no ano que vem, assim como Álvaro Uribe, um democrata conservador durão, na Colômbia. Mas os que previam presidentes poderosos prevalecendo sobre as regras democráticas numa América Latina que deixou as ditaduras militares no passado revelaram-se, de modo geral, errados - e provavelmente isso se repetirá. No Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva poderá conseguir reeleger-se, apesar das acusações de corrupção contra seu governo, embora em disputa talvez apertada com o adversário que Lula venceu na eleição passada, José Serra (na hipótese de que ele decida concorrer). Serra, prefeito de São Paulo, pertence ao Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), a agremiação de centro do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Mas, mesmo se Lula efetivamente vencer, seu Partido dos Trabalhadores, de esquerda, bastante manchado por um escândalo de financiamento político, deverá sair enfraquecido, obrigando Lula a formar uma genuína coalizão governamental. A eleição mexicana poderá ser a mais apertada de todas. Andrés Manuel López Obrador, ex-prefeito da Cidade do México, continua como favorito. Ele amadureceu politicamente no Partido Revolucionário Institucional (PRI), que ficou décadas no poder, embora agora represente um partido esquerdista. Além de enfrentar o próprio PRI, Obrador defronta-se também com forte oposição de Felipe Calderón, um conservador moderado. Calderón tentará reanimar o apetite por reformas evidenciado na histórica derrota do PRI em 2000, batido pelo atual presidente Vicente Fox. Mas, seja quem for o vitorioso, o Congresso mexicano provavelmente continuará rachado em três. O principal problema para um consenso em torno de políticas para a esquerda moderada não vem da direita, mas de um populismo radical. Este é particularmente forte em países com abundantes recursos naturais (Bolívia, Equador e Venezuela), ou em pior situação do que no passado (Argentina e Venezuela). Em tais países, os eleitores parecem facilmente persuadidos por líderes carismáticos de que seus infortúnios são conseqüência de estrangeiros exploradores ou de uma elite tradicional corrupta. A disputa eleitoral na Bolívia, cujas eleições estão marcadas para 18 de dezembro, está sendo acompanhada especialmente de perto em Washington. Pesquisas de intenção de voto dão cerca de 33% para Evo Morales, líder dos cocaleros, amigo de Chávez e representante da população indígena, que é maioria na Bolívia. Se nenhum candidato alcançar maioria absoluta, o novo Congresso vai escolher entre os dois mais votados. Em caso de uma vitória de Morales, o cenário poderá estar montado para uma aguda confrontação - os EUA acusando a Bolívia de ser um "narco-país" e Chávez subsidiando-o com seus petrodólares. As melhores chances de sobrevivência de Morales poderão estar numa aliança com Brasil e Argentina. Na Nicarágua, Daniel Ortega, outro inimigo dos americanos e líder da revolução sandinista, poderá voltar à Presidência. Mas as pesquisas sugerem que um de um punhado de centristas moderados poderá pôr fim a um quarto de século do duopólio entre liberais e sandinistas - desde que consigam registrar-se como candidatos. Embora as eleições na Bolívia e na Nicarágua certamente venham a monopolizar as manchetes, as disputas mais importantes serão no Brasil e no México. O populista brasileiro Anthony Garotinho, ex-governador do Rio de Janeiro, pode montar uma campanha poderosa. No México, o instinto populista de López Obrador deverá ser contido pelo Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) e pela crescente convergência do México com os EUA. Tudo somado, a tendência política geral na região poderá sofrer uma guinada devido a uns poucos milhões de votos nesses dois países. Se Calderón e Serra vencerem, o veredicto será de que a maré virou contra a esquerda. Mas não se os vitoriosos forem Lula e López Obrador. O grande número de eleições a serem disputadas no curto prazo mostra como a democracia passou a ser rotineira nessa região antes palco de muitas ditaduras. Fraudes eleitorais são hoje mais exceção do que regra - só na Venezuela e, possivelmente, no México, os perdedores devem reclamar de fraudes. Mas há aspectos nas regras democráticas que exigem atenção. Os partidos políticos tendem a ser fracos. Em alguns casos, o sistema eleitoral favorece a fragmentação. Em outros, há restrições artificiais à participação. Por outro lado, as eleições estão ficando cada vez mais caras, mas poucos países enfrentaram efetivamente a questão do financiamento de campanhas. Apesar de todos os problemas, porém, a democracia continua "deitando raízes" na América Latina, nas palavras de FHC. Há sinais, em alguns países, de que presidentes e legisladores estão mais abertos a buscar consenso suprapartidário. A questão é se esse avanço democrático aos trancos e barrancos é suficiente. Para que a América Latina possa igualar as taxas de crescimento de países asiáticos, será necessária outra onda de reformas. (Tradução de Sergio Blum)