Título: Construção da nova Política Nacional de Habitação
Autor: Erminia Maricato
Fonte: Valor Econômico, 28/11/2005, Opinião, p. A10

Objetivo principal é concentrar os recursos públicos no atendimento à baixa renda

Uma das conquistas mais importantes do governo Lula foi a formulação de um novo paradigma para estruturar a Política Nacional de Habitação. No entanto, esse dado é desconhecido até mesmo pela maioria dos parlamentares petistas, além de grande parte do governo. Essa construção foi inspirada na tese desenvolvida no Projeto Moradia, elaborado no ano 2000, no Instituto Cidadania, que previa também a criação do Ministério das Cidades e a elaboração de uma política urbana. A estrutura da tese é relativamente simples: ampliar o mercado privado (cuja atuação se restringe ao segmento de luxo), para que este atenda à classe média, e concentrar os recursos financeiros que estão sob gestão pública nas faixas de rendas situadas abaixo dos cinco salários mínimos, onde se concentra 92% do déficit habitacional. De fato, o mercado privado legal (financiamento, construção e comercialização) atinge aproximadamente 30% da população brasileira apenas. Isso explica porque trabalhadores de classe média, que têm emprego formal regular (condição de apenas 50% da população), estão morando em favelas, como é o caso de muitos funcionários da USP e boa parte dos policiais do Rio de Janeiro. O mercado privado está, há muitos anos, restrito aos segmentos de mais alta renda, como apontam inúmeros estudos. O produto mais vendido é o apartamento com vários banheiros (por que tantos?) com uma espécie de clube privativo no condomínio. Foi devido à falta de alternativas que a classe média se apropriou, desde a vigência do BNH, de recursos subsidiados, dificultando ainda mais o atendimento à baixa renda. A partir da extinção do BNH, em 1986, o governo federal ignorou uma política mais abrangente que fosse além de programas isolados, que sofriam mudanças constantes. A partir de então e considerando o baixo crescimento econômico, as favelas e loteamentos ilegais apresentaram um crescimento explosivo. No início dos anos 2000, 60% dos recursos sob gestão federal foram destinados às famílias com mais de cinco salários mínimos, que representam somente 8% do déficit habitacional. Ou seja, no país de vergonhosa desigualdade social, as políticas públicas contribuem para aprofundar essa tendência. Para reverter esse rumo, o Projeto Moradia indicava que seria necessário ampliar o mercado privado e concentrar os recursos públicos e dos fundos nacionais no atendimento à baixa renda. O governo federal tomou duas medidas principais para ampliar o mercado: enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei com a finalidade de dar segurança jurídica e econômica ao mercado, bastante frágil em função da alta inadimplência. A lei 10.391, aprovada em 2004, foi iniciativa do Ministério das Cidades, do Ministério da Fazenda e de lideranças empresariais. A segunda medida para ampliar o mercado foi a resolução nº 3259 do CMN, que tornou desvantajosa, para os bancos, a retenção de recursos da poupança privada no Banco Central. Assim, contrariando a condição vigente nos últimos anos, recursos de poupança estão sendo investidos na atividade produtiva cujo desempenho vem crescendo desde o final de 2004. Resta aguardar uma estratégia de simplificação do produto que está sendo oferecido para que o mercado cumpra um papel mais eficaz no atendimento às faixas de renda situadas entre cinco e dez salários mínimos.

Falta de oportunidade no mercado privado, voltado ao segmento de luxo, levou classe média a usar recursos subsidiados

Para a chamada Habitação de Interesse Social, o desafio foi ampliar os recursos e os subsídios sem expandir a camisa de força do forte contingenciamento nos gastos públicos. Em 2005, o governo federal dispõe de um orçamento inédito de mais de R$ 10 bilhões para habitação. A ampliação se deu por meio de várias fontes (OGU, FAT, FAR, FDS, Tesouro Nacional), mas em especial por meio do FGTS, que tem apresentado crescimento sustentado. Cuidando para garantir a saúde financeira desse fundo que é dos trabalhadores celetistas, o Ministério das Cidades e o Conselho Curador do FGTS definiram um aumento de R$ 1,2 bilhão nos subsídios oferecidos (resolução 460). O desafio de gastar esse volume de recursos tem sido enfrentado pela Caixa Econômica Federal que está implementando, a partir de junho, diversas mudanças operacionais. A nova Política Nacional de Habitação deve ser complementada pela regulamentação da Lei do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, aprovada em 2005, não por acaso, no governo Lula, após 13 anos de espera. Com a nova lei espera-se agregar, além de mais recursos do OGU, recursos de Estados e municípios, no esforço de somar subsídios que ajudem a oferecer moradias para os que estão ampliando as favelas e os loteamentos clandestinos em todo o Brasil. Outro complemento a essa proposta diz respeito à política fundiária que, extremamente arcaica, contribui para a exclusão social e a formação de periferias ingovernáveis. Já há lei para avançarmos na construção de uma cidade mais justa: o Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, que induz à aplicação da função social da propriedade. Mas isso é tema para uma nova oportunidade. A construção da nova Política Nacional de Habitação mencionada aqui não está totalmente consolidada. Mesmo na esfera federal ela ainda depende de diversas iniciativas, como o monitoramento dos investimentos privados pelo Banco Central. O Ministério da Fazenda deve levar em consideração a arquitetura do mercado popular nas medidas de exoneração do setor de construção. A ampliação das faixas de renda para os investimentos do FGTS também pode inviabilizar a arquitetura do sistema, que é distributivo. Essa responsabilidade é do Conselho Curador do FGTS. É muito difícil implementar políticas que integrem diversos níveis de governo ou até mesmo diversos órgãos de um mesmo nível. Mas é especialmente difícil implementar propostas que distribuam renda. São condições que contrariam o caráter patrimonialista do Estado brasileiro. É preciso cautela para que interesses imediatos não inviabilizem uma proposta que fornece um paradigma sustentável e que dá perspectiva de longo prazo à política habitacional. E isto é fundamental para salvar nossas cidades.