Título: Seria melhor que Doha fracassasse
Autor: Dani Rodrik
Fonte: Valor Econômico, 28/11/2005, Opinião, p. A11

Banco Mundial e OMC exageram nas afirmações sobre os eventuais benefícios da Rodada

Imagine que os ministros de Comércio do mundo simplesmente encerrem o encontro da Organização Mundial de Comércio (OMC), do qual participarão em breve em Hong Kong, com esta simples declaração: "Não conseguimos alcançar um acordo; tentaremos um resultado melhor na próxima vez". Isso levaria a chamada Rodada Doha de "Desenvolvimento" a uma conclusão frustrada, mas não seria uma calamidade. Em conversas com funcionários do Banco Mundial e da OMC, sempre ouvimos uma enxurrada de afirmações exageradas sobre os benefícios que seriam proporcionados pela Rodada Doha. Essas autoridades freqüentemente falam como se a subsistência de centenas de milhões de pobres nos países em desenvolvimento dependesse disso. Quando examinadas mais detidamente, concluímos que as afirmações são extremamente frágeis. A mais recente estimativa do Banco Mundial é que a total liberalização do comércio (inclusive de manufaturados e por parte dos próprios países em desenvolvimento) produziria um ganho líquido, para o mundo em desenvolvimento, de meio ponto percentual de sua renda. Mas isso não impediu o banco de fazer o máximo a seu alcance para ocultar esse magro impacto por trás de alegações imponentes. O fato é que a economia mundial está hoje mais aberta do que em qualquer outro momento anterior, e permanecerá assim mesmo que haja um colapso na Rodada Doha. A maioria dos países em desenvolvimento abriu-se substancialmente ao comércio externo e já não emprega as mais prejudiciais políticas do passado (como restrições quantitativas a importações). O equilíbrio político nesses países pendeu decisivamente em favor de grupos pró-comércio focados no exterior. Nos países avançados, as barreiras de comércio à entrada de bens manufaturados e de muitos serviços estão em um mínimo histórico. Seria difícil identificar um país pobre cujas perspectivas de desenvolvimento estejam seriamente impedidas por restrições de acesso a mercados externos. Qualquer país com uma estratégia sensata de desenvolvimento tem a oportunidade de fazer sua economia crescer com ajuda do comércio. Mas o que se pode dizer no terreno da agricultura? Não será verdade que os subsídios agrícolas e outras formas de apoio governamental, nos EUA e na União Européia (UE), prejudicam a fonte de subsistência de milhões de agricultores pobres? A eliminação gradual desses subsídios não reduziria em larga medida a pobreza mundial?

Próxima rodada de negociações de comércio deveria tratar da criação de um espaço político em acordos da OMC para os países em desenvolvimento

A verdade é que o impacto mundial da liberalização da agricultura nos países ricos seria relativamente pequeno e extremamente desigual. Essas políticas podem prejudicar produtores agrícolas em outros países, mas também beneficiam consumidores urbanos pobres. O saldo, favorável ou desfavorável, dependerá do perfil de pobreza de cada país e de eles serem exportadores ou importadores de alimentos. Evidentemente, haveria alguns grandes beneficiários de reformas no setor agrícola, mas estes seriam predominantemente os consumidores e contribuintes do fisco em países ricos. Alguns países de renda média e grandes exportadores de alimentos (como o Brasil e Argentina) também colheriam vantagens. Tais resultados não são desimportantes, mas estão muito distantes do quadro pintado pelos "fundamentalistas" do livre-comércio. Na verdade, o único risco sério de um "fracasso" na Rodada Doha é de que os países ricos venham a levar sua própria retórica a sério e reajam de maneira não produtiva, o que acabaria por levar aos resultados temidos. Os EUA, em especial, poderão intensificar seu empenho em firmar acordos bilaterais, por meio dos quais têm condições de impor prioridades de políticas cada vez mais inadequadas a países menores. O que haveria de positivo em um colapso amistoso nas negociações comerciais é que isso daria aos negociadores uma chance de se concentrarem em questões que são de muito maior relevância para os países em desenvolvimento. A próxima rodada de negociações de comércio deveria abordar as duas omissões mais gritantes até hoje: 1) um esforço abrangente para incrementar a mobilidade de trabalhadores temporários dos países pobres para os países ricos. É nesse terreno que os ganhos da liberalização seriam os maiores, porque é aqui que as barreiras são as mais altas; e 2) a criação de um "espaço político" em acordos da OMC para os países em desenvolvimento. A busca de comércio estimulador de crescimento e políticas industriais dos países em desenvolvimento estão cada vez mais se revelando em conflito com regras restritivas da OMC. As superestrelas do crescimento, como a Coréia do Sul, Taiwan e a China e muitos outros países, não teriam sido capazes de adotar as estratégias de crescimento que puseram em prática se tivessem aplicado as atuais limitações impostas pela OMC. As autoridades de comércio precisam reconhecer as lições desses países e mudar as regras com base nessas experiências. Existe, porém, a possibilidade de que os negociadores de comércio costurem um acordo de última hora em Hong Kong e terminem cantando vitória. Teremos então um acordo cujos benefícios foram extremamente exagerados e com certeza resultarão em desapontamento no futuro - especialmente nos países em desenvolvimento. Teremos, então, também desistido da oportunidade de na próxima rodada criar condições para um real desenvolvimento. Às vezes a promessa de sucesso pode estar em fracassos. E a Rodada Doha é um dos exemplos.