Título: Coerência não se baixa por decreto
Autor: Maria Cristina Fernandes
Fonte: Valor Econômico, 12/11/2004, Política, p. A7

Marcada pelos desencontros entre o governo e seus aliados, a primeira semana do Congresso depois das eleições municipais registrou um raro consenso. Foi aprovado por unanimidade um projeto de lei que derruba a proibição a coligações estaduais diferentes das federais, que ficou conhecido na eleição presidencial como verticalização. De autoria do deputado Valdemar Costa Neto (PL-SP), o projeto tramita na Câmara desde março de 2002, quando a verticalização foi estabelecida por uma interpretação do TSE a uma norma da lei eleitoral. O tribunal, à época presidido por Nelson Jobim, respondia a uma consulta do deputado Miro Teixeira (PPS-RJ), à época no PDT. A justificativa formal da decisão, por 5 x 2 no plenário do TSE, foi a de que a verticalização daria maior clareza ao quadro partidário, permitindo arranjos mais coerentes entre as legendas e reduzindo o grau de fragmentação do poder. Numa decisão posterior, o TSE decidiu liberar os partidos nas coligações estaduais desde que não participassem de chapa presidencial. A decisão causou uma indignação generalizada nos partidos, surpreendidos por uma alteração nas regras sete meses antes do início do jogo. Nenhuma legenda foi tão fortemente atingida quanto o PFL, que veria a candidatura Roseana Sarney cambalear naquele momento para depois ser definitivamente abatida pela operação da Polícia Federal no escritório da Lunus, de propriedade de sua família. Ao contrário das candidaturas Ciro Gomes (PPS) e Garotinho (PSB), a de Roseana se daria por um partido que, regionalmente enraizado, não sobreviveria a uma limitação de alianças. Jobim e Miro sempre refutaram as insinuações de que haveria uma operação destinada a favorecer a candidatura José Serra. Miro acabaria como ministro das Comunicações do governo Luiz Inácio Lula da Silva e Jobim chegaria à presidência do Supremo Tribunal Federal, onde advoga uma maior colaboração com o Executivo. Mas parte do PSDB paulista, constrangido a perder o apoio formal do PPS e do PSB, partidos satélites dos tucanos em São Paulo, viram a verticalização, à época, como uma traição. Empenhado em verificar se a verticalização atingiria seus propósitos de baixar coerência por decreto, o cientista político Rodolfo Teixeira fez uma minuciosa pesquisa para sua dissertação de mestrado na Universidade de Brasília, onde comparou as alianças de 2002 com aquelas feitas em 1998 e 1994. Selecionou os oito maiores partidos e dividiu-os em três blocos de partidos: esquerda (PT, PDT e PSB), centro (PSDB e PMDB) e direita (PFL, PPB e PTB). Desses partidos, seis optaram por apresentar ou apoiar candidatos à Presidência. Apenas o PFL e o PPB ficaram longe das chapas presidenciais.

Verticalização aumentou a incoerência das alianças

O levantamento considerou alianças relevantes aquelas que incluíssem pelo menos um dos oito partidos, os únicos a alcançarem um piso de 2,9% das cadeiras na Câmara em todas as eleições desde 1994. Teixeira chamou de coerentes as alianças feitas por partidos de um mesmo bloco ideológico, de consensuais, aquelas fechadas entre um partido de centro e de um dos extremos, e de Incoerentes, aquelas que envolvem partidos de blocos opostos. O levantamento conclui que, comparadas as três eleições, foi naquela regida pela verticalização onde houve o menor número de deputados eleitos por alianças relevantes. A média de dois terços verificada em 1994 e 1998 baixa para 51% de eleitos em 2002. As alianças coerentes também declinam de 40% em 1994 para 29,5% em 2002. Entre os partidos, o PT e o PSB, que fizeram o maior número de alianças relevantes e coerentes em 1994 e 1998, viram essas alianças se inviabilizarem em 2002. Marcílio Teixeira oferece como explicação para isso o fato de que todos os partidos de esquerda analisados (PT, PSB e PDT) apoiaram candidatos diferentes à Presidência. Além disso, 19 partidos conseguiram pelo menos uma cadeira na Câmara em 2002, um a mais do que na legislatura anterior. O levantamento mostra ainda que o total de legendas da base governista chegou a 13, mais de 300% de aumento em relação a legislaturas passadas. O estudo de Teixeira é um balde de gelo na tese de que os políticos, livres para agir, distorcem a representação política. É natural que partidos semelhantes tendam a se aproximar. Só uma leitura arbitrária como a do TSE pode alterar essa lei da gravidade. Saulo Queiroz, da Executiva Nacional do PFL, não tem dúvidas de que o fim da verticalização é hoje consensual. Não se sabia se o PT, na posse da caneta presidencial, se fizesse valer da verticalização para garantir a fidelidade de sua base aliada. O presidente do partido, José Genoino, no entanto, garante que o partido quer implodir o dispositivo. Diz que o PT sempre foi contra e que a medida não dá conta das disparidades de um país continental. A experiência da eleição municipal teria livrado o partido da tentação de uma camisa de força que assegure a aliança. Resta o PSDB que, passado um ano e meio desde a verticalização, ainda não conseguiu definir uma posição sobre o tema.