Título: Choque de oferta e a trajetória de desinflação
Autor: Por Luiz Fernando Figueiredo e Caio Megale
Fonte: Valor Econômico, 12/11/2004, Opinião, p. A10

Correção da meta torna política monetária mais eficiente.

O IPCA de 2004 deve ficar levemente acima de 7%, contra uma meta do Banco Central (BC) de 5,5%. Desvios da inflação com relação à meta, como o que estamos assistindo este ano, podem ser explicados fundamentalmente por choques de duas naturezas: de demanda, que se resumem por reações de um ou mais componentes da demanda agregada acima ou abaixo do que se imaginava inicialmente, ou de oferta, via de regra relacionados com mudanças abruptas nos custos de produção de bens e serviços. O BC, ao determinar a taxa básica de juros, tem algum grau de controle sobre a demanda agregada. Dessa forma, cabe a ele definir os juros de modo a compensar os choques de demanda, para que esta cresça em compasso com a oferta, garantindo a estabilidade de preços. Já os choques de oferta requerem um período de reajustes de preços relativos, para que os preços dos bens reflitam a nova realidade dos custos dos insumos. Como existe uma certa rigidez para baixo nos preços, é muito custoso exigir que este realinhamento se dê com a queda dos preços dos bens que não sofreram o choque. Assim, na presença de um choque dessa natureza, o BC deve acomodar um aumento inicial de preços daqueles bens cujos insumos foram majorados, e combater seu movimento secundário, ou seja, evitar que essa alta pontual se espalhe para os demais itens da cesta de consumo. Desde o final do ano passado, os preços internacionais das commodities industriais subiram expressivamente - 15% em média, se medirmos pelo índice do Commodity Research Bureau - com impactos claros sobre a cadeia produtiva brasileira. Ademais, passamos pela mudança na legislação da Cofins, que acabou por se traduzir em elevação da carga tributária, como mostram os dados de arrecadação fiscal divulgados pelo governo. Finalmente, ao longo deste ano, o preço internacional do petróleo - insumo básico para combustíveis, plásticos, embalagens, entre outros - subiu de US$ 30 para US$ 50 por barril, mais de 60% em menos de um ano. São exemplos clássicos de choque de oferta. Ao reagir a choques como este, o BC considera em sua tomada de decisões não apenas a inflação, como é apontado por alguns analistas/colunistas, mas também o crescimento. Portanto, em resposta aos choques, a literatura moderna de política monetária recomenda que o BC diversifique os custos do ajuste, aceitando no curto prazo um pouco mais inflação para acomodar o impacto inicial do choque, e um menor crescimento do produto para evitar o efeito inercial. Agindo dessa maneira, o objetivo de alcançar um patamar de inflação baixo fica mantido, porém a ser alcançado em um horizonte mais prolongado. É possível ter uma idéia aproximada do tamanho desse efeito, a partir da observação de dois fatos: a) no Relatório de Inflação de dezembro de 2003, o BC previa, com juros estáveis em 16,5% ao ano e câmbio em R$ 2,94 por dólar, que o IPCA do primeiro trimestre do ano seguinte seria de 1,1%. As trajetórias de juros e câmbio praticamente se confirmaram, mas a inflação observada foi de 1,85% (70% superior).

A ação do Banco Central foi respaldada pelo que há de mais moderno em teoria monetária, não por leniência

Como a forte elevação do preço das commodities se deu exatamente no final de 2003, parece razoável entender que a maior parte do desvio da projeção se deva a seus efeitos sobre o custo de produção dos produtos brasileiros. Outras economias no mundo também mostraram inflação acima do esperado no período; b) através de correlações históricas, podemos mensurar o efeito da alta das commodities metálicas sobre o IPA industrial (calculado pela FGV), e deste sobre o IPCA. Fazendo esse exercício, encontramos que esse impacto acaba se refletindo em IPCA adicional de algo próximo a 1%, compatível com o erro de projeção cometido pelo modelo do BC. Se levarmos em conta que ainda temos que adicionar alguma pressão provocada pela Cofins e pelo aumento dos combustíveis decorrentes da escalada do petróleo, parece razoável supor que o IPCA para 2004, compatível com a meta inicial de 5,5% e condizente com os choques de oferta, seja algo entre 7% e 7,5%. Em linha, portanto, com as projeções atuais. O choque de oferta de 2004 implica também uma inflação mais alta em 2005, dada a influencia inercial da qual ainda sofre o processo inflacionário no Brasil. Apesar de o regime de metas para a inflação ter contribuído para que a formação de preços no país se torne mais determinada pelas expectativas futuras ("forward looking"), nosso longo histórico inflacionário ainda pesa bastante, de modo que muitos preços ainda são reajustados com base na inflação passada. Dessa forma, é recomendável também acomodar uma parte desse efeito - 2/3, segundo a atual metodologia do BC -, o que significa que o choque de oferta de 2004 exige uma correção da meta da inflação para 2005. Não por outra razão, o BC reajustou a meta de 2005 para 5,1%, mantendo a trajetória de desinflação, mas prorrogando o seu horizonte temporal. Outro ponto relevante para a condução da política monetária em resposta a choques de oferta diz respeito à reação das expectativas de inflação quando o BC anuncia que vai perseguir uma meta maior. Ao rever a meta de 2005 de 4,5% para 5,1%, as expectativas do Focus já estavam acima disso, em 5,9%. É possível argumentar que, ao rever a meta para cima, o BC demonstrou certa complacência com a inflação, e que, portanto, o resultado pode ser de que os agentes vão rever suas expectativas ainda mais para cima. Entretanto, esse argumento não parece ser correto: a meta ajustada é mais crível. A ação do BC foi respaldada pelo que há de mais moderno em teoria monetária, não por leniência. Assim, a decisão de rever a meta em resposta a um choque ajuda na ancoragem das expectativas, tornando ainda mais eficiente a condução da política monetária. Em resumo, os expressivos choques de oferta que o país experimentou durante os nove primeiros meses de 2004 fizeram com que a trajetória de desinflação inicialmente programada - 5,5%, em 2004, e 4,5%, em 2005 - seja deslocada para 7%, em 2004, e 5,1%, em 2005. Ao perseguir essa nova trajetória, o BC estará escolhendo o melhor para a sociedade, em termos de inflação e crescimento.