Título: O retorno da múmia!
Autor: Maria Clara R. M. do Prado
Fonte: Valor Econômico, 01/12/2005, Opinião, p. A15
A impressão que se tem é a de estar diante de um velho filme e nada inspirador, da categoria lixo (diria um amigo, por oposição ao que pudesse ser considerada uma obra de arte), do tipo "O Retorno da Múmia". É isso o que vem à mente quando se presta atenção na Argentina de hoje. Depois de várias tentativas de estabilidade, todas custosas, os argentinos voltam a deparar-se com o perigo do descontrole inflacionário. Não faz muito tempo, o país mobilizou-se em torno de um plano de estabilização que durou 11 anos até o desfecho traumático de janeiro de 2002, quando se abandonou definitivamente a conversibilidade, com os depósitos bancários sendo reconvertidos em pesos e a moeda nacional liberada da amarra cambial que a sustentava. O peso passou, em quase quatro anos, da paridade de um para um com o dólar para a cotação atual de três pesos por dólar. A desvalorização deve aprofundar-se diante da escalada da inflação, que poderá chegar a algo em torno de 11% este ano, repetindo a mesma toada, na melhor das hipóteses, para 2006. Na América do Sul, a Argentina só perde para a Venezuela, cuja taxa de inflação tem oscilado em torno de 17% a 18% ao ano. O quadro tende a agravar-se se os prognósticos de menor taxa de crescimento se efetivarem no ano que vem. O FMI tem projetado PIB em torno de 4% para a Argentina em 2006. Significaria crescer praticamente a metade dos 7,5% a 8% previstos para este ano e bem menos dos que os 9% e os 8,8% registrados em 2004 e em 2003, respectivamente. Esses resultados deram um fôlego à economia, que caiu quase 20% no acumulado de 2000, 2001 e 2002. Uma questão crucial é a pressão que as freqüentes e aparentemente crescentes reivindicações por aumento de salários terá sobre a inflação nos meses à frente. Com um PIB crescendo menos, o poder reivindicatório dos influentes sindicatos argentinos tende a se fortalecer. Uma coisa, portanto, está de certo modo atada à outra. Mas o ponto central hoje, relacionado à substituição do ex-ministro Roberto Lavagna pela ministra Felisa Miceli, na pasta da Economia, repousa da atitude do governo, de "confronto" com aqueles que, na avaliação oficial, estão aumentando os preços movidos por ímpeto especulativo. Este talvez seja, em matéria de economia, o filme mais antigo da região latino-americana. Cada ameaça do governo contra aumento de preços precipita a prática da elevação generalizada de preços porque reforça nos empresários o medo de serem apanhados de surpresa por uma política de congelamento. É o cachorro comendo o próprio rabo.
Ameaças ao setor privado não resolverão o problema do controle da inflação na Argentina, principal desafio da nova ministra da Economia
Aquele tem sido o comportamento padrão por estas plagas abaixo da linha do Equador desde que os índices de preços começaram a ser apurados. A história da Argentina está cheia de exemplos, enraizados o suficiente para deixar os empresários de "prontidão" a cada sinal de alerta - como tem sido a convocação do presidente Nestor Kirchner em prol da manutenção do nível dos preços, contra os "desvios injustificados" e as "ações especulativas". Foi esse, aliás, o espírito da reunião que convocou ontem na Casa Rosada com os representantes distritais da província de Buenos Aires, cada um deles se transformando em ativo agente do governo no combate ao aumento "abusivo" de preços. A prática vem de longe. Ainda em março de 1967, o governo argentino anunciou um amplo acordo negociado de preços com as principais empresas, no rastro de uma desvalorização cambial de 40%. A política do controle de preços entrou em cena com mais vigor em 1973, no governo Perón, tendo como motivo de propaganda a necessidade de resguardar o valor do salário real. Mais adiante, quase dez anos depois, o governo mudou a tática, passando a tabelar as margens de intermediação dos preços, mas nada disso funcionou. Em 1984, a inflação Argentina cresceu cerca de 600% ao ano. Mas a comprovada inoperância desta forma de controlar a inflação não removeu o então presidente Raul Alfonsín, em 1985, de introduzir o que se tornou conhecido como plano austral, assentado em um congelamento generalizado de preços, salários e de serviços públicos. Pela primeira vez usou-se a figura da "tablita" para represar o movimento de alta dos preços nos índices. Recorde-se que o instrumento foi usado no Brasil em 1986, com o plano Cruzado, que também se pautou pelo congelamento de preços e salários. Em nove meses, o plano austral foi para o espaço. A Argentina viveu então dias complicados até que Domingo Cavallo introduziu o plano de conversibilidade de paridade cambial fixa e emissão do peso limitada e garantida no volume de reservas internacionais em dólar. O sucesso não tardou, mas a relutância dos políticos em enxergar para frente e perceber a tempo a hora de mudar levou ao desastre que foi o desaparecimento daquele plano. A situação econômica da Argentina pode ser resumida hoje da seguinte forma: um setor público aparentemente sob controle depois da moratória e da reestruturação da dívida externa com credores privados no final de 2003, além do adiamento da quitação dos compromissos com o FMI; atividade econômica perto do limite, tendo em vista o esgotamento da capacidade ociosa da indústria doméstica, combinado com a moderação no fluxo dos investimentos externos; política deliberada de desvalorização do peso para estimular as exportações, mas com decrescentes superávits na conta corrente que podem chegar a zero no ano que vem, depois de ficar em torno de 1,3% do PIB este ano. As reservas internacionais até aqui acumuladas estão no valor de US$ 26,5 bilhões em caixa. Diante dos principais indicadores, não resta dúvida de que o principal desafio da nova ministra da Economia é justamente o controle da inflação. Mas que fique bem claro que dificilmente o problema poderá ser combatido através de ameaças, puxões de orelha ou punições ao setor privado. Preços se formam em função da demanda e da oferta. Não se inventou ainda nenhuma outra fórmula eficaz para explicar o comportamento dos preços. Artificialismos só contribuem para piorar o quadro da inflação.