Título: A oportunidade da Europa
Autor: Wolfgang Munchau
Fonte: Valor Econômico, 12/11/2004, Opinião, p. A11

Unilateralismo do presidente dos EUA tornou os europeus cientes de sua vulnerabilidade

Se há um homem capaz de fazer um europeu se sentir verdadeiramente europeu, este homem não é o presidente Jacques Chirac, da França, nem o premiê Gerhard Schroeder, da Alemanha. É George W. Bush. O presidente reeleito só precisa abrir a sua boca para relembrar ao europeu médio a grande linha divisória cultural, moral e política que atravessa o Atlântico. Muitos europeus supuseram equivocadamente que a eleição de Bush há quatro anos teria sido uma aberração - conseqüência de algum acidente histórico singular ou de uma manipulação eleitoral. Eles acreditavam que uma vitória de John Kerry sinalizaria um retorno à normalidade. Agora, ficou dolorosamente claro para eles que o problema não é o próprio Bush, mas as pessoas que continuaram elegendo ele. Em outras palavras, o problema é estrutural, não cíclico. É neste ponto que reside uma oportunidade. Bush, a partir do ponto de vista dos europeus, pode não ser bom para as relações transatlânticas. Ele pode, porém, ser um catalisador para que a União Européia adote uma política externa e de segurança comum. O unilateralismo de Bush dividiu a Europa e tornou os europeus cientes de sua vulnerabilidade. Ele também tornou muito menos atraente o princípio de soberania nacional em política externa, dada a impotência da política externa nacional nos preparativos que antecederam a guerra. Se os governos europeus persistirem com suas velhas práticas, Bush e os neoconservadores no seu governo poderão ter êxito em dividir o continente mais uma vez. Este argumento se refere basicamente à opinião popular, não a algum tipo de forma de pensamento predominante entre os governos e instituições da União Européia. Estas há muito consideram instrumental o apoio dos EUA para facilitar a integração européia. Apesar de ser uma visão em declínio, os mais dedicados aliados de Bush - especialmente Tony Blair e Silvio Berlusconi, premiês britânico e italiano - não desejarão se relacionar com qualquer coisa que recenda a antiamericanismo. Em outros países europeus, os políticos têm se mostrado mais dispostos a adotar a opinião pública, o que explica por que a hostilidade pública contra os Estados Unidos em geral, e contra Bush em particular, seja significativa. Se Kerry tivesse ganhado, os europeus poderiam ter ficado tentados a se apegar às antigas certezas transatlânticas. A reeleição de Bush acelerará a mudança. Ela poderá, por exemplo, facilitar aos políticos pró-europeus a tarefa de vender aos eleitores o tratado constitucional ainda não ratificado, que será submetido a referendos em vários países membros. Entre as mudanças importantes introduzidas pela constituição está a criação do cargo de ministro das Relações Exteriores europeu e a instituição de um serviço diplomático. Trata-se de um passo limitado na direção de uma política externa comum, especialmente considerando que países membros manterão um veto nacional. Com o retorno de Bush à Casa Branca, os europeus comuns poderão considerar esse tipo de providência bem mais desejável do que teriam caso Kerry tivesse sido eleito.

Bush só precisa abrir a boca para relembrar ao europeu médio a grande linha divisória cultural, moral e política que atravessa o Atlântico

Entre os gaulistas franceses, a reeleição de Bush previsivelmente motivou pedidos para se estabelecer um contrapeso aos EUA. Esta é uma formulação infeliz, devido a sua conotação antiamericana. Um contrapeso por si só não é um objetivo sensato. É preciso chegar a uma definição mais positiva, que estabeleça em detalhe o que esse contrapeso faria. Isso exigirá que os europeus pensem de forma mais estratégica. No passado, eles estiveram propensos a definir política externa principalmente em termos de relacionamentos. Muito tem sido escrito sobre como a Europa necessita ter uma política mais coerente para o Oriente Médio. Igualmente importante é a necessidade de desenvolver um plano para a Ásia, especialmente para a China. Em relação à China, a diplomacia francesa e alemã se concentrou quase exclusivamente nas relações comerciais. É importante ampliar essa relação, visando cobrir outras áreas, como cooperação em segurança e talvez em educação. A necessidade mais premente é a criação de uma estratégia para lidar com a acentuada queda verificada no dólar. Com um déficit comercial dos EUA já se aproximando da casa dos 6% do PIB, a Europa enfrenta a sombria perspectiva de ter de arcar com a maior parte do ajuste decorrente do dólar em queda, a menos que consiga obter algum tipo de acordo político com vários países asiáticos, incluindo a China. A Europa não se tornará uma superpotência nuclear na escala dos Estados Unidos. Ela é uma potência militar, no entanto, e suas relações externas precisam refletir esse fato. Tempos instigantes estão reservados para a política externa européia. Talvez seria precipitado demais afirmar que os europeus deveriam saudar a reeleição de Bush. Eles, contudo, poderiam tentar tirar o máximo de proveito do fato, formulando diferentes estratégias européias, baseadas em um conjunto distinto de valores europeus. Politicamente, deverá ser mais fácil fazer isso agora do que antes. Na era pré-Bush, essas aspirações poderiam ter sido descartadas como um ingênuo e perigoso sonho europeu. Elas ainda são um sonho. Se são sonhos perigosos, depende do ponto de vista. Mas talvez não sejam tão ingênuos como já pareceram.