Título: Líder palestino deixa um mito mas não um Estado
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Fonte: Valor Econômico, 12/11/2004, Especial, p. A12

Iasser Arafat morreu sem ver realizado seu maior, senão único, sonho: a criação de um Estado palestino independente. Pelo contrário, a soberania palestina tornou-se uma meta distante à medida em que a violência recrudesceu nos territórios ocupados (Faixa de Gaza e Cisjordânia), o que levou Israel a descartar definitivamente a possibilidade de negociar com ele. Nepotista, herói, criador de mitos, terrorista - Arafat era visto de todas essas formas. Mas morreu também sob a mancha inequívoca dos sucessivos fracassos de acordos de paz, da corrupção e do desmantelamento de seu governo. Catapultado mundialmente para a condição de líder palestino em 1969, Arafat viu seu status definhar a partir de 2002, ao ser impedido de sair (ficou preso, na prática) de seu QG em Ramallah, cercado por tanques israelenses. Até visitas de autoridades estrangeiras eram monitoradas por Israel. Suas últimas fotos sintetizam de forma única sua decadência: com vários quilos a menos, pousou para as câmaras de pijama e gorro, amparado por correligionários. Algo muito distante da imagem de guerrilheiro invencível, que dizia admirar o ditador Fidel Castro e se orgulhava de usar apenas uniforme militar. "É preciso dedicar-se à causa 24 horas", costumava dizer. O desprestígio político de Arafat nesses dois últimos anos chegou ao ponto de políticos israelenses do alto escalão discutirem em público se deveriam "acabar" ou não com o líder palestino. O próprio premiê Ariel Sharon prometeu isso várias vezes, e provavelmente só não cumpriu a palavra por interferência dos EUA. Embora dissesse ser palestino, biógrafos afirmam que seu nascimento foi no Cairo, em 1929, dois anos depois de o pai (um comerciante de Gaza) e a mãe (de uma família tradicional de Jerusalém) se mudarem para o Egito. Com a morte precoce da mãe, o caçula Arafat e seus cinco irmãos foram mandados para Jerusalém, onde viveriam na casa de familiares. Mas isso nunca foi uma questão relevante - o local de nascimento jamais lhe roubou a identidade palestina. Desde a adolescência foi um defensor convicto da soberania de seu povo. Um sentimento modelou a sua vida política: o ódio aos árabes. "A verdade é que os regimes árabes me traíram", disse ele a um de seus biógrafos quando indagado sobre a conclusão a que tinha chegado da experiência da guerra de 1948, que criou Israel. No Kuait, um dos países que abrigaram centenas de refugiados palestinos do conflito com Israel, Arafat fundou junto com alguns amigos o Al-Fatah, que viria a ser o maior dos grupos de resistência à ocupação da Palestina. Era 1959, e Iasser Arafat tinha então 30 anos de idade. O Al-Fatah era formado por apenas cinco membros: Arafat, à época engenheiro no Departamento de Serviços Públicos do Kuait, Abu Yiad e Abu Jihad (seus velhos amigos), Abu Luft e Abu Said. Desde o início, Arafat mostrou o perfil de líder, lançando mão de subornos para atrair simpatizantes à trupe. Em 1964 decidiu dedicar-se inteiramente à organização e transformou a causa palestina em sua própria encarnação. A virada ocorreu com a desintegração da República Árabe Unida - a então união entre Egito e Síria - em setembro de 1961. As circunstâncias políticas regionais ajudavam a dar força às intenções políticas de Arafat. Mais e mais palestinos prestavam atenção no Al-Fatah, já sob a égide da OLP (Organização para a Libertação da Palestina), e na idéia de lançar um movimento armado para libertar a Palestina. Envolvidos em seus próprios problemas, os regimes árabes diziam-se despreparados para ajudar os palestinos naquele momento. Deram, assim, o empurrão final para que Arafat pegasse em armas e lutasse por conta própria, iniciando a onda de seqüestros de aviões e atos de violência que caracterizaram aqueles anos. "Nossa geração está cansada de esperar algo acontecer. Não é melhor morrer combatendo o inimigo que esperar por uma morte lenta e miserável, apodrecendo em tendas?", perguntou certa vez. "O objetivo de nossa luta é acabar com Israel, e isso não permite acordos. Não queremos a paz. Queremos a guerra, a vitória", disse ele em outra ocasião. Foi por volta desta época também que Arafat adotou um dos grandes símbolos de seu comprometimento com a luta palestina: o uso do "kaffieh", o tradicional pano xadrez árabe colocado sobre a cabeça dos homens, dobrado de forma que lembrasse o mapa da Palestina. Nenhum outro guerrilheiro jamais ousou copiá-lo. Como líder militar, Arafat liderou a maior parte dos ataques contra israelenses. Participou de batalhas históricas, como a de Karameh (1968) e Beirute (em 1982, quando Israel invadiu o Líbano). Seus admiradores e adversários concordaram em um ponto: nunca faltou coragem a Arafat. Durante os anos de luta na guerrilha, Arafat disse ter contabilizado 40 tentativas de assassiná-lo - várias comandadas por Sharon, que já foi ministro da Defesa de Israel. Nos anos 70 e 80, sobreviveu meses escondido em Beirute, de onde coordenava as milícias palestinas que operavam na guerra civil libanesa. Saiu ileso também de conflitos na Jordânia. Uma das histórias que contribuíram para criar o "mito Arafat" ocorreu em 1992, quando seu avião foi derrubado numa tempestade no deserto da Líbia. Os dois pilotos e o navegador morreram, mas Arafat apenas se feriu. Para a grande maioria dos palestinos, fatos como esse enalteciam ainda mais seu líder: Arafat sobrevivia quando seus amigos morriam. Não foi só sorte. Sua maneira de viver contou muito. Ele andava armado e sempre rodeado por guarda-costas que dormiam em seu quarto. Jamais passou mais de três noites no mesmo local. "Nunca sei onde durmo", repetia. Também houve um tempo em que o então guerrilheiro palestino lançou mão de disfarces - andou pelas ruas de Jerusalém vestido de camponês, de xeque e de padre. Fingiu até ser mulher. Arafat também tinha o hábito de mudar compromissos na última hora. Enlouquecia assessores ao cancelar viagens e alterar itinerários. Um dos exemplos mais citados é a primeira aparição do líder palestino na Assembléia Geral da ONU, em Nova York, em 1974. Ele pediu para que seus funcionários preparassem um avião no Cairo e fez o mesmo com sua equipe em Damasco. Acabou embarcando em um terceiro avião, da Argélia. A campanha armada contra Israel, desferida dos vizinhos Jordânia e Líbano, levou à expulsão de Arafat e seu grupo desses países e ao exílio na Tunísia, em 1982. Gradualmente, porém, Israel reconheceu o que os demais países já aceitavam: apesar de Arafat não desfrutar da autoridade de chefe de Estado, ele minimizou sua vida privada de maneira a se tornar líder incontestável de seu povo. Mais do que isso, Arafat foi o rosto do sofrimento e das aspirações de uma enorme população dispersa, vivendo sob o status de refugiados. Ele colocou o indigesto "problema palestino" - como alguns líderes regionais ironicamente o chamam - à mesa dos principais dirigentes do mundo. Favorecido pelo contexto da Guerra Fria, Abu Ammar (como era popularmente conhecido) atraiu a simpatia das esquerdas da época e o respeito de alguns países ocidentais, apesar da tática de guerrilha usada contra Israel pela OLP, da qual assumira a direção. Mas os anos passavam, e as dificuldades de milhares de refugiados continuavam. Eles temiam e ao mesmo tempo odiavam o esquecimento internacional. A eclosão da primeira Intifada nos territórios ocupados, no fim dos anos 80, levou a um momento decisivo de sua trajetória política: o histórico Acordo de Oslo, que selou em 1993 o aperto de mão com o premiê israelense Yitzhak Rabin, mediado pelo presidente Bill Clinton no gramado da Casa Branca. O acordo levou ao fim do exílio e ao retorno de Arafat à Faixa de Gaza, um ano depois. O ano de 1994 reforçou a mudança dos ventos a seu favor: foi eleito presidente do primeiro governo palestino, a Autoridade Nacional Palestina (o que finalmente lhe deu legitimidade internacional), e recebeu o Prêmio Nobel da Paz junto com Rabin e Shimon Peres, por seus esforços pela paz no Oriente Médio. Mas o acordo lhe cobrou um preço alto: a aceitação da existência de Israel e a subseqüente divisão palestina em grupos favoráveis e contrários à paz nesses termos. Grupos extremistas, como Hamas e Jihad Islâmica, ganharam fôlego. Oslo não trouxe os benefícios esperados. Respeitados críticos palestinos argumentavam que o acordo deixava de lado questões cruciais: o retorno de cerca de dois milhões de refugiados, a demarcação das fronteiras, a aceitação de Jerusalém como sua capital. A contínua e opressiva ocupação israelense fazia um número maior de palestinos se questionar: "uén salam?". Onde está a paz? A pobreza em boa parte dos territórios ocupados e a falta de perspectivas quanto ao futuro fizeram crescer o clima de tensão social. Em setembro de 2000 teve início a segunda Intifada, um levante palestino ainda mais sangrento e longo que o primeiro. O estopim foi uma visita de Ariel Sharon, então membro do Parlamento de Israel, a um local sagrado dos muçulmanos em Jerusalém. Mas por trás de toda a fúria estava a profunda frustração palestina com o colapso de uma nova negociação de Arafat com os israelenses, que tinham como interlocutor o premiê trabalhista Ehud Barak. Analistas afirmam que nunca, na história palestina, se chegou tão perto de se fechar um acordo de paz amplo e duradouro com o governo judeu. EUA e Israel culparam Arafat por rejeitar ofertas generosas. O líder palestino insistia, porém, que elas não atendiam às demandas básicas do palestinos e, portanto, não tratava-se de uma proposta que pudesse vender à população. "Nós não estamos pedindo a lua", disse Arafat ao exigir a devolução de terras aos palestinos. Grupos rompidos com a AP aumentaram ataques a alvos, inclusive civis, israelenses. Arafat foi acusado de não ter coibido nem reprimido os atentados das milícias extremistas. Alguns acham que ele já não tinha mais controle sobre elas. Washington e Israel o acusaram também de incitar a violência como estratégia para ganhar concessões e de não criar entre os palestinos um clima de conciliação com os israelenses. Assim, o afastaram de qualquer negociação de paz. O presidente americano George W. Bush e seu colega Ariel Sharon pressionaram de tal forma por mudanças na Autoridade Palestina que Arafat se viu obrigado a nomear um primeiro-ministro, ainda que com poderes muito limitados. Mahmoud Abbas foi o primeiro a ocupar o cargo, mas saiu alegando falta de liberdade para trabalhar. Seu sucessor, Ahmed Korei, já ameaçou renunciar. Preso em seu QG, Arafat manteve o controle das principais decisões de governo, como a segurança nos territórios. Paralelamente, as notícias de corrupção na Autoridade Palestina começaram a ganhar eco. Apesar da disciplina do líder, hábitos esbanjadores se espalharam no círculo de poder. Em seu livro "O Mistério de Arafat", o conceituado jornalista israelense Danny Rubinstein descreve o estilo de vida dos apadrinhados do líder como contrastante com a realidade na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Enquanto nos campos de refugiados a miséria impera, seu séquito mora em casas luxuosas, se veste pomposamente, viaja em carros importados, manda seus filhos para escolas americanas e européias. Arafat sempre soube de tudo isso mas, em vez de combater a corrupção, parecia encorajá-la. Quanto mais sua equipe ostentava tais hábitos, mais ele tirava proveito. "Era uma forma que usava para assegurar o poder", diz Rubinstein. "Contas bancárias e bens da organização sempre estiveram em nome de Arafat. Ele assinava todos os cheques para departamentos e atividades da OLP, e os bancos eram instruídos a honrar apenas papéis com a sua assinatura." Arafat, contam pessoas próximas, não criou exatamente uma atmosfera de medo para intimidar aqueles que fizessem críticas a sua pessoa. Mas mostrou talento em punir e humilhar em público. Ele, porém, não batia de frente com a opinião pública palestina. Se encontrasse forte resistência quanto a alguma medida, recuava. Também conseguiu absorver como ninguém o sentimento palestino - e respondia a ele. Em 1990, por exemplo, os palestinos defendiam um posicionamento a favor do ditador iraquiano Saddam Hussein durante a invasão do Kuait. A provocação de Saddam aos EUA e a conexão entre expulsar iraquianos do Kuait e judeus da Palestina entusiasmaram as massas palestinas. Consciente de sua relação de forças no conflito, Arafat apoiou o Iraque. Um grande erro, como ele mesmo reconheceria depois. Mas Arafat achava que, se tivesse dado as costas a Saddam, o dano a seu prestígio sepultaria sua carreira política. Como era de seu feitio viver somente para a causa palestina, não avisou ninguém quando casou-se com Suha Tawil, uma cristã que se converteu ao islamismo por "razões políticas". Ele tinha 62 anos, ela 27. A união gerou uma filha. Com sua política de manter-se como representante único dos palestinos, Arafat não deixou nenhum sucessor evidente. A questão agora é se sua ausência propiciará a realização do sonho do Estado Palestino ou aprofundará ainda mais o caos que ele deixou.