Título: Ação contra CPI dos Bingos mantém tensão entre poderes
Autor: Maria Lúcia Delgado e Juliano Basile
Fonte: Valor Econômico, 05/12/2005, Política, p. A6

Crise Conflito entre Judiciário e Legislativo ameaça recrudescer

Em breve, o Supremo Tribunal Federal (STF) será chamado a interferir novamente nos procedimentos do Legislativo, ao analisar ação do PT contra a CPI dos Bingos. O partido está incomodado com o fato de a Comissão Parlamentar de Inquérito ter iniciado investigações fora do campo das jogatinas, como o assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel, e o pagamento de uma dívida do presidente da República com o PT pelo atual presidente do Sebrae, Paulo Okamoto. Será mais um capítulo do embate entre o Judiciário e o Legislativo, que se revelou intenso nesta crise política deflagrada pelas denúncias de pagamento à base do governo com recursos que podem ter se originado em operações com empresas públicas. Um dos desdobramentos da crise política é exatamente esse estranhamento entre o Judiciário e o Legislativo. Ao longo do processo de cassação do ex-ministro José Dirceu, que recorreu por três vezes ao Supremo Tribunal Federal (STF), a discussão sobre a interferência do Judiciário nas atividades do Legislativo levou a divisões em ambos os Poderes e provocou desgastes e questionamentos sobre o papel das instituições no Estado Democrático de Direito. Trouxe à tona, inclusive, paradoxos, como o fato de o Legislativo criticar exatamente a instância que protege os parlamentares, e à qual recorrem quando consideram haver injustiças internas e atos ilegais do governo. Foi o Supremo que garantiu, por exemplo, a instalação da própria CPI dos Bingos em defesa do direito das minorias no Congresso. O mesmo STF mandou o Senado dar o direito de defesa ao senador cassado João Capiberibe (PSB-AP), um dia após a Casa ter-lhe tirado o mandato por ordem da Justiça Eleitoral. O debate não necessariamente produzirá conseqüências concretas, mas certamente serve para auto-crítica dos dois poderes. O senador Jefferson Péres (PDT-AM), por exemplo, vem defendendo que as indicações para o Supremo deixem de ser atribuição do presidente da República, um debate que dificilmente terá desdobramentos. Em 2006, o ministro Carlos Velloso deixa o Supremo e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fará uma nova indicação. Passará a ter cinco ministros indicados por ele, entre os 11. A intenção do governo, desta vez, é nomear um jurista cuja carreira esteja voltada para questões de Estado. Alguns parlamentares reconhecem que houve, sim, desrespeito a procedimentos legais na condução do processo de cassação de Dirceu no Conselho de Ética. Por outro lado, outros consideram que o Supremo perdeu a aura de respeitabilidade ao entrar, com extrema desenvoltura, para o campo da política. Há ainda quem pondere que essa é a primeira geração de ministros do Supremo pós 64, ou seja, todos indicados por presidentes da República eleitos pelo povo. Esse perfil teria reforçado a disposição da Casa de interferir, sim, para garantir o cumprimento dos limites constitucionais. Para o líder do governo na Câmara, Aloizio Mercadante (PT-SP), a crise política levou ao esgarçamento entre os poderes. "Toda vez que a política perde espaço na democracia, o peso das instituições burocráticas aumenta os conflitos institucionais. A política está criminalizada e desgastada, e aí aparece o peso da burocracia institucional, do Ministério Público, da Justiça", analisou. "É inconcebível que o juizado de instrução pudesse se transformar em parte acusadora", criticou o deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), advogado, ao comentar a atuação do Conselho de Ética da Câmara. Segundo ele, a oposição errou ao disparar uma saraivada de críticas ao Supremo, inclusive com ameaças de suspender a votação do Orçamento enquanto o processo de cassação de Dirceu não fosse apreciado. "Houve erro de procedimento legal no Conselho, houve pressa, açodamento e desrespeito a princípios constitucionais", disse Greenhalgh. O presidente do Conselho de Ética, Ricardo Izar (PTB-SP), não admite falhas processuais: "Uma coisa é certa: ele teve o amplo direito de defesa garantido", afirmou. Para o líder do PFL no Senado, José Agripino Maia (RN), eventuais excessos em ambos os poderes foram fruto da tensão do momento. "Nada definitivo, que tenha seqüelas", opinou. O problema foi gerado, conforme o pefelista, porque José Dirceu quis conduzir um processo de cassação, que é político, como se fosse exclusivamente jurídico. "Serve de lição para embates futuros e correções de rumos em todos os três poderes", concluiu o líder do PFL. O Supremo, pontuou outro dirigente oposicionista, ajudou a elevar a temperatura da crise.: "O Executivo está amiudado, o Congresso péssimo e o Supremo, que, sempre ficou fora do bate-boca, agora se apequenou", concluiu essa fonte. No STF, a divisão de opiniões ficou clara durante os debates. Sepúlveda Pertence e Celso de Mello - os ministros decanos - argumentaram que o STF deve interferir, sim, em determinados processos do Legislativo para garantir o cumprimento a limites impostos pela Constituição. Mello lembrou que, durante a votação sobre os direitos políticos do presidente Fernando Collor, entre 1992 e 94, o STF era chamado constantemente a analisar pedidos de diversas facções. Pertence também usou o episódio Collor para mostrar que o Supremo tem o papel de guardião das atividades legislativas quando essas se referem à Constituição. A outra corrente no STF, que negou o pedido de Dirceu, levantou duas teses centrais. A primeira tese foi eminentemente prática: a de que Dirceu teve a chance de se defender durante o processo. Ela foi capitaneada pelo ministro Carlos Ayres Britto, relator do mandado de segurança de Dirceu. Britto reconheceu que, apesar de o ex-deputado não ter contraditado o depoimento da presidente do Banco Rural, Kátia Rabello, o Conselho de Ética lhe abriu prazo para tanto. Mas, a defesa de Dirceu optou por outra estratégia - a de pedir nova oitiva de testemunhas, o que foi negado pelo Conselho. A segunda tese dentro da corrente de ministros que negaram a ação de Dirceu foi a de que o STF não pode interferir em assuntos internos do Congresso. Ela foi amplamente defendida pelo ministro Joaquim Barbosa, que citou casos em que a Suprema Corte dos Estados Unidos optou pela não-interferência em temas internos do Congresso americano. Já os decanos consideram que, no Brasil, a situação é diferente e é permitida a intervenção para preservar a Constituição.