Título: As críticas ao Banco Central
Autor: Affonso Celso Pastore e Maria Cristina Pinotti
Fonte: Valor Econômico, 05/12/2005, Opinião, p. A10

Alguns opositores apenas sucumbem a apelos populistas

O Banco Central (BC) está novamente no centro de uma forte onda de críticas. É preciso separar o joio do trigo, pois há dois tipos de críticas: aquelas que decorrem de análises baseadas em sólidos fundamentos econômicos e em evidências empíricas para o Brasil e para outros países no regime de metas de inflação; e as críticas com base em meros palpites, em preconceitos ideológicos e em um péssimo entendimento sobre o funcionamento da economia. Discriminar entre um e outro tipo de crítica é crucial, porque significa separar as sugestões para a preservação dos sucessos obtidos pelo atual governo na gestão da política econômica daquelas que sucumbem ao canto da sereia dos apelos populistas, pondo a perder o que foi conquistado até agora. Com base na teoria econômica e na experiência de outros países com sucesso na condução de suas políticas monetárias, há muitas evidências de que o BC deveria aumentar no presente momento a flexibilidade da política monetária. É preciso avaliar por que a política monetária deveria ser mais flexível e por que o BC resiste em aumentar essa flexibilidade. Primeiro, quer porque a inércia inflacionária é elevada, quer porque o governo toma medidas que reduzem a eficácia da política monetária - como a veloz expansão do crédito ao consumidor, que foi estimulada em meio a um programa de desinflação - os desvios da inflação com relação à meta tomam um tempo muito grande para se dissiparem. A conseqüência é que a tentativa de produzir uma rápida convergência da inflação para a meta exige taxas reais de juros mais elevadas do que na ausência destas anomalias, elevando o custo econômico da convergência, porque conduz à desaceleração do crescimento e gera uma perigosa valorização cambial. Este ponto foi claramente demonstrado em um importante artigo escrito por Fraga, Goldfajn e Minella, que resume os fundamentos de uma política monetária mais flexível, que jamais perde o seu objetivo de longo prazo de produzir a convergência para as metas, mas toma explicitamente em consideração o objetivo de minimizar as flutuações do PIB. É por isso que os criadores do regime de metas de inflação, no Brasil, optaram pela colocação de bandas amplas em torno do ponto central da meta. Elas foram criadas para que choques inflacionários pudessem ser parcialmente acomodados, minimizando as flutuações do produto, sem abandonar o compromisso com a convergência da inflação para o ponto central da meta em um prazo mais longo. A experiência mais recente, no entanto, é a de um Banco Central que quase religiosamente busca o centro da meta, ou no máximo tolera apenas um pequeno desvio com relação a este valor, mesmo diante do custo de elevar as flutuações do PIB; de valorizar perigosamente o real; e de elevar o custo da dívida pública. Por que isso? O atual governo orgulha-se de dar ao BC uma independência de fato, que pela sua própria natureza é precária, e nega-se a propor ao Congresso a independência legal. Entenda-se que a independência refere-se à autonomia no uso dos instrumentos para trazer a inflação para dentro do intervalo que contém a meta, e não necessariamente para o ponto central da meta em um curto período de tempo. A falta de independência legal coloca o BC na defensiva, por elevar a suspeição de que tem limites mais estreitos para resistir a pressões políticas, e o conduz a rejeitar taxas de inflação um pouco mais distantes do centro da meta, ainda que colhesse dessa forma um custo menor em termos da desaceleração temporária do PIB. Em segundo lugar, é preciso lembrar que a política monetária não é feita no vácuo e sim no contexto das condições impostas pela economia internacional e pela política fiscal. Às vésperas de um ano eleitoral, acentuam-se as pressões para o aumento de gastos públicos, que já vêm em forte crescimento, e para uma redução nas metas dos superávits fiscais primários. Aceitar estas pressões é um erro crasso na condução da política econômica, e obrigar o BC a baixar mais fortemente a taxa de juros apenas e tão somente para abrir espaço para um aumento ainda maior dos demais gastos públicos seria um erro ainda mais grave, ou mais especificamente uma grande irresponsabilidade. Discussões como esta, agora, levam o BC a uma posição ainda mais conservadora.

Falta de independência legal põe BC na defensiva e o faz rejeitar taxas de inflação mais distantes do centro da meta

As indicações para uma flexibilização da política monetária são claras. Primeiro, dada a elevada liquidez internacional, as elevadas taxas domésticas de juros e os superávits comerciais proporcionados pelos ganhos nas relações de troca, o câmbio vem se valorizando, e esta trajetória de valorização poderia ser amainada caso a taxa de juros declinasse mais velozmente, com grandes vantagens relativamente à estratégia custosa implementada nos últimos meses, de acumular reservas e de realizar swaps reversos. Segundo, ainda que se reconheça que as várias correções dos dados do PIB em trimestres subseqüentes sugerem a necessidade de cautela na interpretação das taxas de variação imediatamente após a sua publicação, ninguém pode negar que há uma clara tendência à desaceleração da atividade econômica, que vem sendo provocada fundamentalmente pelo grau excessivo da austeridade monetária, mesmo diante do impulso de uma expansão veloz e politicamente motivada do crédito aos consumidores, e pelo crescimento das exportações líquidas. O desejável, nestas circunstâncias, seria que os custos da convergência para a meta fossem minimizados através de um grau maior de flexibilidade, acelerando a velocidade de declínio da taxa de juros. Porém as pressões políticas e a falta de definição institucional sobre a independência do Banco Central conspiram contra este resultado. Quem defende o aumento da flexibilidade da política monetária em razão dos seus custos, como a excessiva volatilidade do PIB e a valorização do real, corre o risco de ser interpretado erradamente e confundido com os que atribuem o conservadorismo do Banco Central a uma pura teimosia, ou os que deliram admitindo que "um pouco mais de inflação não seria de todo mal, porque permitiria um crescimento maior". A teoria econômica e a história mostram que não é possível acelerar o crescimento com mais inflação. Mostram, ainda mais, que os países que crescem de forma sustentada são os que conquistaram um elevado grau de estabilidade de preços. A ausência das condições necessárias para que o BC exerça livre e eficazmente o seu mandato de controlar os preços eleva o seu grau de conservadorismo, e infelizmente impede que as próprias autoridades monetárias aceitem críticas quanto aos seus exageros, baseadas em análises fundamentadas econômica e empiricamente. Mais útil do que colocar pressões sobre o BC no limiar de um ano político como o que se iniciará em breve seria tomar definições importantes no campo da política fiscal, é pelo menos anunciar a disposição do governo Lula em prosseguir com gestões na direção de produzir a independência legal do BC. A percepção de riscos seria muito menor caso existisse a institucionalização de um compromisso com superávits fiscais primários pelos próximos cinco ou seis anos, em magnitude suficientemente elevada para reduzir a relação dívida/PIB, e proveniente de cortes de gastos, e não de aumentos de receita, que continuam ocorrendo em larga escala e que aumentarão ainda mais caso prevaleça a visão da ala esquerda do governo Lula, de que o maior benefício para o país derivaria do aumento dos gastos governamentais. Com isto criar-se-iam as condições para uma maior flexibilização da política monetária. O BC não teria mais razões para engajar-se em um excessivo grau de austeridade, e nem de negar que a dose de elevação de taxa de juros é excessiva no atual momento da economia. Ficaria claro que a insistência de nossas autoridades monetárias em não aceitar o uso do intervalo para meta, e de manter a taxa real de juros excessivamente elevada, conduz a uma perda de crescimento econômico, em um período no qual as condições internacionais favoráveis elevaram significativamente as taxas de crescimento de todos os países emergentes, e a uma valorização excessiva do real. Os argumentos aqui expostos explicam por que o BC tem sido excessivamente conservador, mas não justificam a sua atitude, nem eliminam a conseqüência deste conservadorismo, que é a desaceleração mais do que necessária do crescimento, a valorização mais do que necessária da taxa cambial, e a elevação mais do que necessária do custo da dívida pública.