Título: A desigualdade desencalhou
Autor: Marcelo Côrtes Neri
Fonte: Valor Econômico, 06/12/2005, Opinião, p. A11

A lentidão na implementação de reformas econômicas valeu ao Brasil o apelido de país-baleia, em contraposição à agilidade institucional dos tigres asiáticos. Se pelo tamanho e inércia o Brasil pode ser comparado a uma baleia, no campo da desigualdade social seríamos até agora uma baleia encalhada. A nossa desigualdade de renda tem se mantido alta e estagnada, mantendo-nos no pódium mundial da desigualdade desde 1970. Por outro lado, as últimas pesquisas apontam que a internacionalmente famosa iniqüidade inercial brasileira dá sinais de queda. Escrevi no dia 1/3/2005, nesta seção, artigo intitulado "A desigualdade desencalhou?", e escrevo agora um quase homônimo - tirando apenas a interrogação - atualizado com os microdados da última PNAD do IBGE. Em primeiro lugar, esclareço algumas diferenças entre as nossas medidas de desigualdade e as apresentadas na publicação oficial da PNAD 2004. Seguindo a tradição da literatura de bem-estar social, enfatizamos o uso de medidas baseadas em renda domiciliar per capita. Nela, agrega-se à análise de elementos isolados relativos ao desemprego, informalidade, renda do trabalho, juros, aluguéis etc. o efeito de transferências privadas e as realizadas pelo Estado a título de pensões, aposentadorias e programas sociais. Em particular, o rendimento real do trabalho de pessoas ocupadas com rendimento - constante entre 2003 e 2004 em R$ 733 - deixa de fora o ganho proporcionado pelo aumento de 2,7 milhões de postos de trabalho. A saída de uma situação de renda zero ignorada representa relevante ganho de poder de compra. Mesmo quando a publicação da PNAD amplia o conceito para renda domiciliar total de todas as fontes de renda, apenas considera os domicílios com rendimento, excluindo os mais pobres dos pobres, aqueles alijados da chamada economia monetária. Como a parcela de domicílios sem rendimento caiu 27% da proporção, a queda divulgada do índice de Gini de renda domiciliar total em 2004 é diminuída em 16%. Distorções como estas são observadas em anos anteriores. Complementarmente, o cômputo de renda domiciliar per capita leva em conta o peso dado aos mais pobres que possuem famílias, em geral, maiores. Trabalhamos aqui com distribuição de renda no sentido estatístico, incluindo tanto mudanças na desigualdade como no crescimento da renda domiciliar per capita, inserindo sempre os sem-renda. A análise dos determinantes agregados da pobreza expressos nesses termos revela que um terço do movimento de queda da miséria de 8% resulta do efeito crescimento - ou seja, líquido do crescimento populacional - de 2,85%, e os dois terços restantes à redução da desigualdade de renda, aqui representada pela redução do índice de Gini de 0,585 para 0,573. Esta dominância do aspecto redistributivo é evento raro nas séries sociais brasileiras. Na década passada, decretamos o fim da inflação inercial e universalizamos o ensino fundamental. A presente década apresenta-se como a da redução da desigualdade.

Na década passada, o país decretou o fim da inflação e a universalização do ensino fundamental; esta é a década da redução da desigualdade

A redistribuição de 2004 é aproximadamente equivalente àquela acumulada no período de 2001 a 2003 quando passou de 0,598 para 0,585. Ou seja, no último ano o ritmo de desconcentração de renda foi duplicado em relação ao biênio anterior, que já era atípico frente ao histórico das séries brasileiras. No artigo supramencionado, projetamos para 2004 uma redução de pobreza de 8,61% com base num Gini de 0,574 (contra 0,573 observado ex-post) e um crescimento per capita de 3% contra 2,85% da PNAD. Sem recorrer a uma repentina sabedoria depois dos fatos, resultados próximos aos agora observados. Cabe frisar a robustez dos resultados encontrados tanto no que tange às mudanças da miséria como da desigualdade. No que se refere ao último aspecto, fizemos a comparação da parcela da renda acumulada por cada centésimo de distribuição, que aponta para um resultado geral: a distribuição de renda per capita de 2004 é mais igualitária que a de 2001. Em outras palavras, a queda de desigualdade é válida para todos indicadores de desigualdade que respeitam o princípio das transferências de Pigou-Dalton, segundo o qual ao se transferir mais renda de uma pessoa com mais renda para uma pessoa com menos, sem inverter a posição relativa destes dois indivíduos no ranking, a medida de desigualdade deve cair. Esta generalização é conhecida como dominância de Lorenz. Similarmente, demonstramos através do conceito de dominância estocástica de primeira ordem que, para qualquer linha de pobreza e qualquer tipo de indicador de pobreza utilizado, a miséria aumentou em 2003, caiu em 2004 e, no cômputo geral do biênio, caiu no governo Lula. Além da linha adotada pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas e da generalização, também apresentamos o monitoramento da chamada extrema pobreza, seguindo a linha adotada na primeira Meta do Milênio, de reduzi-la à metade entre 1990 e 2015. O valor desta linha é de US$ 1 por dia, ajustado por diferenças de custo de vida entre países e no interior do Brasil, o que daria 12,41% de miseráveis em 1993, contra 36,57% da linha de miséria do CPS no mesmo ano. Seguindo a linha de US$ 1, a pobreza cairá a menos da metade entre 1993 e 2005, se a miséria cair 8% entre 2004 e 2005. Apesar de alguma desaceleração do crescimento do PIB e na geração de trabalho, a continuidade da expansão do Bolsa Família - que cresce esse ano 2,2 milhões, atingindo 8,7 milhões de famílias no final de 2005 (11,6 milhões no final de 2006) - e, em particular, o ganho real de 9% do salário mínimo - que "estoura" as contas públicas - já ocorrido em 2005 levarão a uma queda da miséria superior àquela de 2004. De acordo com as metas acordadas, a meia vida da miséria deveria ser de 25 anos, mas no nosso caso foi de menos de 12 anos, ou entre 15 e 16 anos, contados a partir da marco zero das metas do milênio em 1990. O acompanhamento da evolução da miséria ao longo do tempo, seja agregada, seja organizada por grupos de atributos isolados como sexo ou idade ou educação etc., seja por combinações desses atributos individuais, (ex: uma senhora nordestina analfabeta), ou àquela que mais interessar, pode ser feita no sítio www.fgv.br/cps .