Título: Controvérsias sobre a competência do CNJ
Autor: Flávio Dino
Fonte: Valor Econômico, 06/12/2005, Legislação & Tributos, p. E2

"O Conselho Nacional de Justiça é uma experiência de gigantesca relevância e seu eventual fracasso ampliará a desconfiança no sistema judicial"

Com o início das atividades do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), surgiram controvérsias no tocante às suas competências, que provavelmente serão levadas à apreciação do Supremo Tribunal Federal (STF), única instância judicial encarregada de interpretar os limites do artigo 103-B da Constituição Federal. Vejamos alguns desses pontos em debate. Em primeiro lugar, discute-se sobre a competência normativa do CNJ - essencial para que, de fato, haja um estatuto da magistratura nacional, rompendo com a multiplicidade de interpretações administrativas que só trazem instabilidade, perplexidade e desgastes à imagem do Poder Judiciário. Trata-se de, pela via normativa, controlar a atividade administrativa dos tribunais brasileiros, assegurando a observância dos princípios inscritos no artigo 37 da Constituição. Quando a Carta, eu seu artigo 103-B, refere-se ao estatuto da magistratura, abrange não só a lei complementar destinada a veiculá-lo mas também as regras que integram o estatuto constitucional da carreira. Ou seja, comandos constitucionais de eficácia plena podem ser regulamentados pelo novo conselho, como sempre foram pelos tribunais, independentemente de prévia edição de lei - dispensável exatamente em face da auto-aplicabilidade do preceito da Constituição. Assim, a competência regulamentar não deve ser vista como acessória de leis em sentido estrito, e sim em sentido amplo - alcançando regras emanadas diretamente da Constituição. A observância do princípio da legalidade não se confunde com o estabelecimento de tantas barreiras ao exercício da atividade regulamentar que acabe por inviabilizá-la, reduzindo-a a efetuar mera cópia do diploma superior. Interessante notar que os tribunais sempre exerceram competências normativas, inclusive com efeitos externos, mormente após a Constituição de 1988. Diante dessa atuação nunca se ergueu o óbice da inconstitucionalidade por violação ao princípio da reserva legal, de modo que somente uma leitura distorcida do princípio da tripartição funcional do Estado pode embasar a impugnação à atividade normativa do novo conselho.

Controles administrativos existem em profusão no nosso direito, a exemplo dos conselhos de contribuintes

De outra face, debate-se sobre a competência do CNJ para desconstituir atos administrativos no âmbito do Judiciário. Não há qualquer incompatibilidade entre essa competência e o controle jurisdicional. Controles administrativos, inclusive por intermédio de colegiados assemelhados a tribunais, existem em profusão no nosso direito, a exemplo dos conselhos de contribuintes ou das juntas de recursos da Previdência Social. Quando um ato administrativo praticado por membro ou órgão do Poder Judiciário for impugnado judicialmente (por exemplo, via mandado de segurança), e administrativamente, no âmbito do CNJ, a atuação concomitante resolve-se pelo reconhecimento da perda superveniente do interesse de agir. Suponhamos que se cuide de uma licitação. Anulada esta por decisão do conselho, há perda de interesse de agir na esfera judicial. O contrário também é verdadeiro. Finalmente, acerca das tarefas atinentes ao planejamento estratégico, merece especial menção a recente Lei nº 11.178, de 2005, que veicula as diretrizes orçamentárias para o ano de 2006. Esta legislação determina que os projetos de lei relativos ao aumento de gastos com pessoal e encargos sociais no Judiciário da União sejam submetidos a um parecer de mérito do CNJ. Trata-se de um dispositivo salutar, em boa hora introduzido pelo legislador ordinário. Na concretização do novo comando, cabe ao CNJ fornecer subsídios que propiciem um crescimento mais harmônico do Judiciário, auxiliando os ramos políticos do Estado no arbitramento de prioridades para a distribuição dos recursos públicos. Destacamos que o CNJ emite um parecer de mérito, isto é, não é um mero exame de adequação orçamentária e financeira. Não há que se falar em inconstitucionalidade, pois está preservada a autonomia dos tribunais para deflagrar o processo legislativo e, evidentemente, a competência decisória do parlamento. Como a lei em foco dirige-se exclusivamente à Justiça da União, é conveniente que se fixem regras similares para os Estados. Assim, o CNJ poderá auxiliar os parlamentos estaduais, inclusive fornecendo informações e parâmetros comparativos entre unidades federadas com características sócio-econômicas semelhantes. Em conclusão, lembramos que novos artefatos institucionais são imprescindíveis para que marcas da história brasileira como o patrimonialismo, o autoritarismo, o insulamento administrativo e os controles externos ineficientes, sejam superados cada vez mais. O Conselho Nacional de Justiça, neste contexto, é uma experiência de gigantesca relevância. Seu eventual fracasso ampliará a desconfiança e a desesperança que ameaçam todo o Estado democrático de direito, aí evidentemente incluído o sistema de Justiça.