Título: A arte de ministrar frustração na veia
Autor: Rosângela Bittar
Fonte: Valor Econômico, 07/12/2005, Política, p. A6

Completa 100 dias a greve dos professores das universidades federais. Um ciclo que, na definição do ex-ministro da Educação do governo Lula, senador Cristovam Buarque, comprova que a universidade não é mais necessária da forma como está estruturada. E, na concepção do presidente da Comissão de Educação da Câmara, deputado Paulo Delgado, faz a universidade voltar a ser um mosteiro da idade média, virada para dentro de si mesma, incapaz de olhar o mundo à sua volta. Ainda que voltem hoje ao trabalho, diante de reivindicações atendidas, os professores em greve, seus superiores que evitaram puní-los com o corte do ponto da remuneração, única providência capaz, em regime democrático, de fazê-los compreender a realidade para além de seu emprego, e os sindicatos e comitês onde têm assento os líderes que os representam, terão levado a universidade ao abandono. Distanciam-se dela os parceiros mais modernos, a sociedade, promovendo os grevistas a volta das instituições a uma ordinária vida corporativa. A atual greve dos professores universitários é um grande passo rumo ao atraso. Da forma interminável como feita hoje, a greve dos professores transformou-se em um instrumento soberbo, egoísta e, principalmente, deseducativo. Prejudica aqueles que são a razão de ser das instituições superiores de ensino, os alunos, e somente eles. Depois de passar pelo ensino fundamental, completar sua formação básica no ensino médio e viver uma desgastante preparação para o concurso vestibular, o jovem de 18 anos que conseguiu ingressar na universidade em julho último ainda não completou sua mudança de vida. Decepcionado, vive longas férias forçadas, sem programa, em meses que seriam de trabalho, e entra nas folgas natalinas com a perspectiva de iniciar o trabalho quando as instituições normais, cujos planos não foram sabotados, estão começando as férias. Quem ingressou no ensino superior federal pelo vestibular de julho ainda não teve aulas e deve estar achando que a universidade brasileira é esta balbúrdia, esse caos. O governo formalizou ontem a proposta final aos professores, enviando ao Congresso projeto de lei que altera a estrutura da sua carreira e da sua remuneração, com R$ 650 milhões para reajustes médios significativos, acima da inflação. Aguardava-se ontem à noite o veredicto do comando de greve que, no final da manhã, quando o projeto já estava publicado no Diário Oficial, continuava ignorando-o. A greve é vencedora - já o era antes do aumento salarial incluído no projeto de lei que tramitará em regime de urgência no Congresso - não apenas pelas reivindicações atendidas, como também por terem os grevistas mantido íntegros, no ócio, os seus salários. A atribuição de punir com o corte do ponto é da direção das instituições, que dispensou a responsabilidade. Decepcionante, em todos os sentidos, a atitude dos professores, que preferiram manter presas ao passado as regras da paralisação, recusando-se a atualizá-las no sentido de encontrar formas que pudessem socializar os prejuízos, concentrados, totalmente, no aluno. Confronte-se a professora Marina Barbosa, a presidente do sindicato nacional dos docentes das instituições de ensino superior (Andes, sigla que transmutou-se de associação acadêmica para um sindicatão corporativista), com as evidências das distorções provocadas pela greve, e o que se vai constatar é que vive-se, alí, na direção do movimento, um mundo particular de contradições.

Indesejadas férias antes de começar o trabalho

Sobre o prejuízo aos estudantes: "A greve, seja ela em qualquer setor, sempre traz transtornos para a vida de todo mundo. Inclusive para a vida daqueles que estão fazendo a greve. Não é só o aluno que fica sem ter aulas, nós também modificamos todo o cronograma de nossas vidas, em termos de pesquisas, cursos, preparações que são desmontadas nesse processo". Sobre o semestre perdido:"A gente sempre teve o compromisso de repor as aulas com a integralidade do tempo e da qualidade". Lembrada de que o tempo não volta atrás, concede: "Mas aí é da vida. É uma contingência imposta pela intransigência do governo, não é pelo movimento". A professora sofisma: "O semestre não é perdido, esse termo é indevido. Quando terminam as greves, redefine-se o calendário e vamos repor as aulas". Sobre a regulamentação do direito de greve, que integra a Constituição de 88, e que o presidente da Comissão de Educação da Câmara, Paulo Delgado, quer promover agora, Marina Barbosa manifesta-se radicalmente contra:"É uma forma de restringir um direito assegurado pela Constituição". Posta a ênfase em mais esta contradição, uma vez que ela própria, presidente do sindicato, avocou excepcionalidade para o seu caso, comparecendo ao trabalho para defender tese durante um período de greve dos docentes, a professora não acha que a regulamentação seja dar a todos, inclusive aos estudantes, o exercício dos mesmos direitos que ela teve. "O movimento tem maturidade e a ética necessária para garantir o funcionamento daquilo que é essencial num processo de greve. Na medida em que você tem uma regulamentação, a tendência é retringir o direito de greve". O que é essencial, mais uma vez, é o que diz respeito aos professores grevistas, não aos alunos: "Há as atividades compreendidas como as que não devem ser inviabilizadas. Isso sempre incluiu concursos públicos que já estão agendados, seminários nacionais e internacionais, defesa de teses e apresentação de relatórios de pesquisa com programação assegurada". Déjà vu, autocentrada, retrógrada esta visão. tanto que levou o deputado Paulo Delgado, citado em Roberto Pompeu de Toledo semana passada, a assinalar a necessidade de uma atualização da agenda da indignação. "A greve continua" é prima de "O povo unido jamais será vencido" e cunhada de "Abaixo a ditadura". Quando leu este comentário, um amigo do deputado telefonou-lhe e acrescentou: "E avó do yankees go home".