Título: Rússia e Brasil negociam terra, céu e espaço
Autor: Robinson Borges
Fonte: Valor Econômico, 12/11/2004, Eu, p. 2

Especial De carne a trigo, de aviões e energia a satélites e sondas espaciais, os dois países vivem momentos decisivos de aproximação econômica e política

A chegada do presidente Vladimir Putin ao Brasil, no dia 21, significa um passo importante nas relações bilaterais entre o Brasil e a Rússia. Putin é o primeiro chefe de Estado do país a fazer uma visita oficial ao Palácio do Planalto, embora já tenha se encontrado com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em algumas ocasiões no exterior, quando demonstrou grande interesse em negociar com o Brasil, política e economicamente. Lula, que retribuirá a visita oficial em abril, já havia assinalado a simpatia pela Rússia no discurso de posse, quando declarou que as relações com Moscou seriam prioritárias. Mas, como alertou o vice-presidente José Alencar, em Moscou, "boas relações diplomáticas dependem de boas relações comerciais". Alencar esteve na Rússia, no mês passado, para participar da Comissão de Alto Nível Brasil + Rússia. O governo russo só mantêm este canal com os EUA, a China, a França e a Ucrânia. As boas relações entre Brasil e Rússia, porém, ainda não foram traduzidas em cifras. Em 2003, o comércio dos dois países chegou a cerca de US$ 2 bilhões. A meta de ambos é que se atinjam US$ 6 bilhões em três anos. "Não é possível que dois gigantes tenham conta de comércio neste patamar. Podemos triplicar este valor", comenta Yevgeny Primakov, presidente da Câmara de Comércio e Indústria da Federação Russa e ex-primeiro ministro. O potencial existe. O Banco Mundial indica que em 2003 a Rússia ocupou a 16ª posição no ranking das maiores economias, com Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 433,5 bilhões. Estava uma posição abaixo do Brasil, que fechou o ano com PIB de US$ 492,3 bilhões. Recentemente, relatório do Goldman Sachs criou a sigla Bric, para designar os quatro países que serão mais fortes economicamente em quatro décadas: Brasil, Rússia, Índia e China. No caso do Brasil e da Rússia é importante preparar o terreno. O aumento do valor e a diversificação da pauta de comércio é um passo, mas primeiro é preciso buscar equilíbrio na conta de trocas. Hoje, a situação é favorável ao Brasil, que exportou US$ 1,5 bilhão em 2003 e recebeu US$ 555 milhões de importações russas. "Não desejamos apenas saldo positivo. Queremos aproveitar nossas potencialidades", diz Alencar. "O comércio internacional exige complementaridade." Apesar da diferença, é possível verificar evolução da balança. De 1999 a 2003, a corrente comercial aumentou 136,5%. No ano passado, a Rússia ocupou a 14ª posição de maior destino das exportações brasileiras e a 19ªentre os fornecedores do Brasil. Os dados do primeiro semestre mostram posição idêntica, mas revelam balança menos distante do equilíbrio. As exportações do Brasil aumentaram 9,1%, com embarques de US$ 832 milhões, enquanto as vendas russas tiveram elevação de 85%, totalizando US$ 414 milhões. Pelo passo adiante que a visita de Putin pode significar, é grande a expectativa de empresários sobre o rumo das relações entre os dois países. Na terça, será aberto o seminário "Brasil-Rússia: O Fortalecimento de uma Parceria", no Hotel Intercontinental de São Paulo. O interesse maior está nos segmentos de carne, trigo e aeronáutica, envolvidos em questões particularmente sensíveis. Em setembro, o Kremlin suspendeu as compras de carne brasileira - bovina, suína e frangos - por causa de foco de febre aftosa no Amazonas. "Buscamos o entendimento por meio das análises de peritos russos e brasileiros para continuar a importação, mas queremos preservar os russos de doenças da carne brasileira", diz Mikhail Fradkov, primeiro-ministro da Rússia. A medida compromete projeções do governo brasileiro de crescimento da corrente de comércio. A importância do item carne é fundamental na relação entre os dois países. "A previsão é de que a conta de comércio cresça um pouco em relação ao ano passado, mas menos do que o projetado", afirma o embaixador Mario Vilalva, diretor do Departamento de Promoção Comercial, que esteve em Moscou participando de seminário com empresários russos e brasileiros. Mas sua expectativa é de que Putin traga "boas notícias". Na viagem que Alencar fez a Moscou em outubro, acompanhado do secretário-executivo do Ministério da Agricultura, José Amaury Dimarzio, o tema do embargo foi abordado com o vice-ministro da Agricultura russo, Alexei Gordeev. "Nossa previsão é de que o governo russo dê uma resposta ao caso neste mês. Se não derem, o presidente Lula deverá tomar uma posição, agora que o presidente Putin vem ao Brasil", diz Dimarzio. Mas a novela tem outro capítulo tenso: a decisão russa de fixar cotas para a importação de carnes, considerada pelo governo como prejudicial ao agronegócio do país. "A questão das cotas tem de ser corrigida, para oferecer segurança a exportadores e importadores. O Brasil pode provar à Rússia que tem condições de atender o seu mercado", diz Alencar. Desde 2003, está em vigor na Rússia a cota de 1,9 milhão de toneladas para a carne, dividida entre vários países fornecedores. Em primeiro lugar vêm os EUA, com uma reserva de 771 mil toneladas. O Brasil, enquadrado na categoria "outros", só obteve espaço por causa de problemas fitossanitários de fornecedores com cotas definidas. "Não queremos ser discriminados em detrimento dos países ricos", afirmou Pedro de Camargo Neto, presidente da Associação Brasileira da Indústria Produtora e Exportadora de Carne Suína (Abipecs), no encontro com empresários, em Moscou. De acordo com Dimarzio, o Brasil propôs que a Rússia, antes de entrar na Organização Mundial do Comércio (OMC), substituísse o sistema de cotas por tarifas. O vice-presidente José Alencar tambem encaminhou a proposta ao presidente Putin e ao primeiro-ministro Fradkov. O sistema de tarifas permitiria ao Brasil competir por mais espaço no mercado russo, pois as cotas privilegiam os americanos e europeus. "Para entrar na OMC, é preciso respeitá-la. O Brasil é o país que mais obedece a OMC. Não há o subsídio. Somos competitivos", afirma Alencar. A questão da carne está ligada a outro assunto delicado das relações entre Brasil e Rússia: a licitação de US$ 700 milhões para a aquisição de 12 caças para a Força Aérea Brasileira (FAB). Um dos responsáveis pelo desatamento do nó, agora, é o próprio Alencar, que passou a acumular as funções de ministro da Defesa. Em Moscou, como vice-presidente, visitou as instalações da Sukhoi, fabricante russa de aviões militares, que está na disputa com a Embraer. Autoridades russas dizem que as deliberações sobre a importação de carne e da venda de aviões são interdependentes. Se a Sukhoi vencer a licitação para os caças, o governo russo ofereceria ao Brasil pacote de US$ 3 bilhões, envolvendo transferência de tecnologia e redução nas tarifas de exportação para a Rússia. Além disso, a Embraer poderia ser beneficiada com a exportação de aviões para a Aeroflot, estatal de aviação. A Embraer não quis comentar o assunto. "A Aeroflot pertence ao governo russo. Se o Brasil se decidir pelos caças da Sukhoi, o presidente Putin pode, na mesma hora, decidir pela aquisição dos aviões da Embraer", diz uma autoridade russa. A fonte também afirma que é possível que a Embraer se una à Sukhoi para a montagem dos aviões no Brasil, caso os russos ganhem a licitação. Esse resultado também levaria à instalação de uma fábrica da Embraer na Rússia. Do lado russo, há mais um problema: a restrição brasileira à importação de trigo, vetada por questões sanitárias. A abertura do Brasil ao trigo russo está sendo negociada há anos e, por causa do embargo à carne, virou moeda de troca nas conversações entre os países. O Brasil propôs medida de certificação para habilitação do trigo russo, mas, alega-se em Brasília, que autoridades russas atrasaram a entrega de documentos. Apesar do cenário nebuloso, autoridades dos dois países mostram-se entusiasmadas com a possibilidade de diversificação da pauta de comércio. Um dos setores mais importantes é o de energia. Parte dos projetos implica a realização de investimento direto no Brasil, como aqueles em que a Gazprom, maior produtora de gás do mundo, se associaria à Petrobras. O diretor internacional da Petrobras, Nestor Cerveró, que participou do seminário em Moscou, no mês passado, confirmou a proposta de parceria e admitiu a possibilidade de criação de uma joint-venture. Ele esteve na Rússia com uma equipe técnica, para discutir diversas parcerias, não só com a Gazprom. "Os russos têm experiência na área de construção de gasodutos e oleodutos, o que nos interessa. A vantagem para eles é que o Brasil pode ser um pólo para toda a America Latina", diz. A estratégia da Petrobras na área de gás e energia prevê investimentos acima de US$ 3 bilhões. A empresa calcula que o mercado brasileiro de gás terá crescimento de 14,2% ao ano até 2010, o que exigirá infra-estrutura a ser construída para o setor ao longo do período. Em 2003, a produção de gás chegou a 30,7 milhões de metros cúbicos/dia. Nos próximos sete anos, deve-se alcançar o nível de 77,6 milhões de metros cúbicos/dia. A Stroitransgaz é outra empresa russa que se prepara para participar de projetos no Brasil com a Petrobras. Programas conjuntos poderão levar à construção de até 6 mil quilômetros de sistemas de oleodutos, estações de compressores e outras estruturas para o setor de petróleo e gás. Na área petrolífera, a russa Zarubejneft deve participar da elaboração de projetos tecnológicos de exploração de campos de produção, perfuração de novos poços de petróleo e reparação dos existentes. Outra área que ganha destaque é a espacial. Os dois governos vão assinar acordo de US$ 800 milhões, a serem pagos, em maior parte, pelo Ministério da Ciência e Tecnologia brasileiro em seis anos. A questão espacial é estratégica para o Brasil, por que em 2010 expira o prazo para que o país instale satélite geoestacionário. Se o prazo não for aproveitado, o controle de vôos e das telecomunicações brasileiras poderá vir a ser realizado por satélites americanos. O chefe da agência aeroespacial russa, Anatoli Perminov, espera que a transferência de tecnologia também seja feita para o programa brasileiro de lançamento de sondas de sensoreamento remoto da Terra. "A vantagem é a preservação das riquezas naturais do Brasil, pois essas sondas permitem controlar ações ilegais contra o meio ambiente, como o corte de árvores proibidas", declarou Perminov ao Valor. Essas sondas possibilitariam a observação de objetos em movimento no território brasileiro e seriam instrumentos de garantia da Segurança Nacional. "A implantação desse sistema poderá ser feito em bases bilaterais de investimento - talvez, até com a criação de uma joint-venture. O investimento maior seria do Brasil. Caberia à Rússia o fornecimento de tecnologia", diz Perminov. O programa de cooperação, que incluiria a restauração da base aeroespacial de Alcântara, também serviria para a Rússia disseminar sua tecnologia por outros países da América Latina. As expectativas, porém, vão muito além desses segmentos. O governo brasileiro avalia que a Petrobras tem aberto um caminho para outras áreas. Os brasileiros querem vender frutas e software bancário para os russos. Em São Petersburgo, o setor naval é uma das atividades que interessam ao Brasil. "Essa cooperação por setores tem um importante efeito multiplicador nas relações bilaterais entre os países, por que se espalha para outros segmentos da economia. O potencial entre Rússia e Brasil é enorme. Do tamanho dos dois países", afirma Vilalva.