Título: A eleição presidencial do Chile
Autor: Flávio Leão Pinheiro
Fonte: Valor Econômico, 08/12/2005, Opinião, p. A15

Independente do resultado, não haverá mudanças bruscas na política doméstica

No próximo dia 11, o Chile dará continuidade à temporada eleitoral latino-americana, com eleições para o Legislativo e Executivo nacionais. Em ambos os pleitos, a disputa está restrita às duas coalizões partidárias que dominam o cenário político chileno desde a saída do general Augusto Pinochet. De um lado, a Concertación, aliança de centro-esquerda que governa o país desde 1990 e que congrega o Partido Democrata Cristão (PDC), o Partido Socialista (PS) e outras legendas menores de esquerdas; do outro, a Alianza, que reúne a Unión Democrata Independiente (UDI), a direita tradicional, e a Renovação Nacional (RN). Não se prevê grandes modificações para as vagas no Congresso, com a coalizão governista mantendo a maioria, que já se prolonga por 16 anos. A disputa presidencial, por sua vez, mostra-se indefinida. Apesar de a imprensa chilena, até pouco tempo, ter dado como certa a vitória da governista Michelle Bachelet (PS), as últimas pesquisas apontam um cenário não muito confortável para a candidatura oficial. No último mês, a diferença entre Bachelet e seus dois maiores adversários políticos diminuiu de forma substancial. Há poucos meses, a socialista detinha mais de 50% das intenções de voto; hoje, de acordo com o instituto de pesquisa Centro de Estudios Publicos (CEP), ela possui 39%. Seus dois principais oponentes, o representante da UDI, Joaquín Lavín, e o senador da RN, Sebastián Piñera, mantêm-se tecnicamente empatados, mas o fator que mais assusta o comando da campanha governista é que a soma dos pontos dos dois candidatos já ultrapassa os de Bachelet. O cenário de uma vitória no 1º turno fica cada vez mais distante, enquanto as incertezas provenientes de uma 2ª rodada estimulam os concorrentes, especialmente Piñera, político e empresário bem-sucedido que procura imprimir um novo perfil à direita chilena. No entanto, nada além da acirrada disputa aproxima as eleições presidenciais de 2005 com as anteriores. Nos anos 90, o tema central na vida política do Chile era, por excelência, o processo de transição democrática: reforma constitucional; direitos humanos; compromisso com o legado econômico; relação civil-militar. Passados quase seis anos de governo do presidente Ricardo Lagos - o primeiro socialista a assumir o poder depois de Salvador Allende - boa parte destas questões foram resolvidas. Há consenso sobre o modelo econômico e a sombra de Pinochet já não afeta o cotidiano político. Nesse cenário, é interessante observar o debate pré-eleitoral em torno da questão social, um dos principais temas da campanha, e da política externa, por trazer implicações para os países sul-americanos.

Mazelas sociais não chegam a colocar em risco os consensos sobre o modelo econômico, como controle inflacionário e responsabilidade fiscal

Diante do esgotamento da agenda da transição democrática, o debate político no Chile concentra-se no contraste que persiste entre a prosperidade econômica - que marcou o país na década de 1990, com média de crescimento do PIB de 7% (1984-1997), em uma região que, no mesmo período, obteve uma taxa negativa que variou entre - 0,5% e - 1% (1990-1999) - e as mazelas sociais, que os seguidos governos da Concertación não foram capazes de atenuar no grau necessário. Assim, ao mesmo tempo em que o Chile busca integrar-se à OCDE e não perder as esperanças semeadas na década passada, quando boa parte da classe política acreditava que, em 2010, o país seria considerado uma nação desenvolvida, depara-se com o posto de um dos líderes em desigualdade social, ao lado da Nigéria, Zimbábue e, claro, do Brasil. Esse cenário não chega a colocar em risco os consensos sobre o modelo econômico, como controle inflacionário, responsabilidade fiscal e abertura comercial, mas trazem alguns questionamentos que puderam ser constatados nos últimos debates. Nesse sentido, os três candidatos com chances reais de chegar ao poder - Bachelet, Piñera e Lavín - trabalham em cima de questões pontuais, como a reforma do elogiado sistema privado de pensões, programas de geração de empregos e de segurança pública; medidas que visam à implementação de políticas sociais específicas que, ao contrário de questionar o modelo, buscam aprimorá-lo. Já no que diz respeito à política externa, pode-se perceber uma maior divergência entre os candidatos, especialmente em relação ao Mercosul. Durante o governo Lagos, o Chile conseguiu consolidar sua reinserção no cenário internacional depois dos 17 anos do regime autoritário de Pinochet. Com a política do regionalismo aberto, deu segmento à liberalização comercial, valendo-se, então, dos tratados de livre-comércio (TLC), em detrimento da usual abertura unilateral dos anos 80; buscou maior aproximação com a Ásia, EUA e Europa, mas não deixou de lado o projeto de integração regional sul-americano. Nesse processo, o Chile foi um dos protagonistas, em especial a partir da I Reunião dos Presidentes da América do Sul, em 2000. O país nutre grande interesse na integração regional, principalmente no que diz respeito à infra-estrutura e à integração energética. Ainda tem sérias divergências com o Peru e a Bolívia, mas não se pode dizer que nos últimos anos o Chile não tenha se mostrado mais aberto ao diálogo. Diante das eleições, boa parte dessa política se mantém. No que diz respeito ao Mercosul, no entanto, a situação é diferente. Sebastián Piñera diz que o Mercosul "foi um péssimo tratado para Chile porque se negociou mal". Lavín, que o "Mercosul será renegociado em seu governo". Os representantes da UDI e da RN questionam a complementaridade do acordo comercial e o criticam por ser desleal com o setor agrário chileno. Diferente da grande maioria de seus vizinhos - em especial dos andinos, submersos em séries contínuas de crises institucionais - e diante da quarta disputa presidencial em 16 anos de democracia, pode-se afirmar que o Chile reassumiu a estabilidade institucional que lograra ao logo do século XX, interrompida pelo golpe de Estado de 1973. Além da estabilidade, o país também se mostra empenhado em enfrentar as mazelas sociais que não o deixam se esquecer de sua latinidade e o impulsionam a integrar-se mais à região para dar cabo a determinados problemas de forma conjunta. Por fim, deve-se ressaltar que, independente do resultado final, não haverá mudanças bruscas na administração da política doméstica, uma vez que o país vem trabalhando com políticas de longo prazo. Nesse sentido, espera-se que o processo político chileno sirva de modelo para a temporada eleitoral que se inicia na América Latina.