Título: A gente não quer só comida
Autor: Ricardo de Souza
Fonte: Valor Econômico, 09/12/2005, Política, p. A6

Eleição sem cultura Representantes da cultura nacional analisam as propostas dos quatro principais candidatos à Presidência para o setor e detectam

A sensação de déjà vu é inevitável. Em tempos de eleição, expressões como "geração de empregos", "incentivo à produção" e "desenvolvimento social" saltam da boca dos candidatos na mesma frequência em que trocam acusações. Não é diferente quando o assunto é cultura. As propostas dos postulantes à sucessão de Fernando Henrique Cardoso para o setor - que movimenta anualmente cerca de R$ 6,5 bilhões, o que representa 1% do PIB nacional, segundo dados da Fundação João Pinheiro, de Belo Horizonte - soam como ecos da eleição presidencial de quatro anos atrás, com poucas variações. Uma delas é que, agora, talvez apreensivos com a difícil situação econômica do país, ninguém se atreva a falar em aumentar o orçamento, de aproximadamente R$ 170 milhões anuais.

Fora isso, tudo parece um discurso bem ensaiado: "maior participação do Estado", "cultura como instrumento para afirmação da cidadania", "descentralização dos recursos destinados ao setor". Propostas como essas fazem parte do programa de governo dos candidatos Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Ciro Gomes (PPS), José Serra (PSDB) e Anthony Garotinho (PSB). Mas também estavam presentes, em 1998, nos discursos de Lula, Ciro Gomes e do então candidato à reeleição Fernando Henrique Cardoso.

Freqüentemente, artistas, intelectuais e outras pessoas ligadas ao setor cultural criticam a "falta de consistência" das propostas. Todavia, poucos se dispõem a preencher as lacunas e incoerências que apontam nos discursos ou sugerem possíveis correções.

Numa tentativa de suprir esse vazio, o Valor convidou quatro representantes da área cultural para avaliar as propostas culturais dos quatro principais candidatos à sucessão presidencial e propor sugestões. São eles: o presidente do Instituto Pensarte, Leonardo Brant; o designer gráfico e ex-diretor do Itaú Cultural, Ricardo Ribenboim; o advogado e especialista em política cultural, Fábio Cesnik; e Adauto Novaes, diretor do Centro de Estudos Arte e Pensamento, no Rio, e ex-diretor do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Funarte.

Antes das análises, porém, é preciso conhecer um pouco as prioridades dos presidenciáveis para o futuro da cultura nacional. Lula diz que "é preciso fazer da cultura um direito básico do cidadão, conjugando políticas públicas do setor com políticas educacionais". Ciro também defende "a maior participação do Estado na promoção e estímulo à produção cultural, a ampliação do acesso a esse bens e a integração de cultura e educação". Para Serra, "é fundamental que a cultura seja tratada como ferramenta para o desenvolvimento social e afirmação das identidades e como elemento de formação da cidadania". Por sua vez, Garotinho promete centralizar as ações na "democratização do acesso e ampliação, descentralização e interiorização das ofertas, articulando a cultura com o sistema de ensino".

Todos os candidatos enfatizam a utilização da cultura como forma de "inclusão social" e alternam críticas e elogios às leis de incentivo fiscal, defendendo a descentralização da distribuição de recursos. Por sinal, a dependência da cultura nacional das Leis Rouanet e do Audiovisual também é questionada por profissionais do setor (ler texto na pág. 15).

Na opinião de Ricardo Ribenboim, poucos candidatos têm um programa consistente para a cultura. "Sem dúvida, a maioria das respostas não traduzem uma idéia clara de um plano de governo", observa o artista. "É fácil dizer que cultura gera emprego, reduz o índice de criminalidade, etc. Mas com que verba? Sem dinheiro empenhado, nada poderá ser feito. Sou efetivamente a favor do aumento dos recursos destinados ao setor para 1% do orçamento global da União. Com isso, o governo estará praticamente decuplicando o atual orçamento, que gira em torno de 0,12%." Ribenboim acredita que para tornar possível a solução de questões sociais a partir de projetos culturais, "é preciso que o novo presidente assuma esse compromisso".

"No que diz respeito às prioridades, Serra é o mais pontual. Ele declara que a conjunção entre cultura e educação será tratada como prioridade social. As outras propostas dos candidatos ficam na obviedade daquilo que faz parte da Constituição em vigor", afirma o artista. Ele elogia também o discurso de Lula, que admite que houve avanços no setor cultural nos últimos anos. "Me agrada também que o candidato do PT priorize a formação não só de público, mas, principalmente, de criadores de cultura."

Ribenboim afirma que, antes de mais nada, todos os candidatos devem se comprometer com a "inclusão cultural e social". "É preciso que se faça um mapeamento da diversidade cultural do país, para promover a formação, fomento e difusão do trabalho dos artistas e pesquisadores, propondo sempre a sinergia entre a ação social e de educação", sugere. "Mas é importante deixar claro que atividades sociais catalisadas por projetos culturais não são responsabilidade única da cultura. Por outro lado, projetos culturais impulsionados por ações sociais podem contribuir para um novo plano de cultura. Tanto Lula como Serra colocaram muito bem essa questão", analisa o artista.

Na semana passada, o Instituto Pensarte - empresa paulistana que presta consultoria e realiza outra atividades no mercado cultural - divulgou o "Manifesto por uma Cidadania Cultural". No texto, a entidade propõe a reestruturação do Ministério da Cultura (MinC) e, a exemplo de Ricardo Ribenboim, o aumento da verba destinada à cultura para 1% do orçamento União. O presidente do Pensarte, Leonardo Brant (organizador do livro "Políticas Culturais", lançado na semana passada e que reúne artigos de vários autores sobre o assunto), argumenta que as propostas do instituto pretendem "ampliar a discussão sobre política cultura no país". Para ele, é necessário que o MinC atue em conjunto com os demais ministérios, colocando em prática "programas de valorização do patrimônio, profissionalização e conquista de novos postos de trabalho, busca de divisas de exportação e complemento à educação formal."

"Os candidatos precisam apresentar metas de universalização do acesso à cultura e apresentar um plano concreto de atuação sobre os conteúdos televisivos, já que 90% da população brasileira só tem a acesso à cultura pelos veículos de comunicação de massa", observa o consultor. "Paralelamente, é necessário permitir que uma maior parcela da população vivencie os processos culturais. Para isso, os candidatos precisam apresentar um plano de investimentos para minimizar esse problema estrutural do país."

Brant também apontou lacunas nas propostas dos candidatos nas questões relacionadas aos direitos autorais e do apoio à indústria cultural, que, segundo ele, "carecem de medidas concretas". "A cultura é apontada como prioridade nos discursos dos candidatos, mas na prática eles têm pouco mais que boas intenções e respostas evasivas sobre questões de real interesse ao desenvolvimento na nação", critica.

Na análise de Fábio Cesnik, entre as tais "questões de real interesse" estão o aumento de orçamento para a cultura e da ação articuladora do setor, que considera fundamentais. "Seguindo o espírito do francês Jack Lang (ex-ministro da Cultura da França e atual ministro da Educação), os candidatos deveriam encampar duas batalhas básicas: num primeiro momento, o compromisso com o aumento de orçamento para o setor - tanto da administração direta quanto do Fundo Nacional de Cultura - e realizar uma campanha para ampliação do número de empresas que investem em cultura e das emendas parlamentares destinadas ao setor", diz Cesnik. "Com isso seria possível manter mais programas em funcionamento e fomentar mais ações privadas." Em segundo lugar, o advogado propõe uma ação interministerial integradora dos órgãos de governo. "Só se faz programa de leitura com o Ministério da Educação. Não há outra maneira", afirma.

Depois de analisar as propostas de Lula, Ciro, Serra e Garotinho, Cesnik constata, decepcionado, que "a cultura não está no centro do programa de nenhum dos candidatos e não é visto como questão estratégica".

Adauto Novaes vai além: diz que a cultura nunca esteve entre as prioridades do governo nos últimos oito anos. E faz duras críticas à atuação do MinC nesse período. "O Ministério da Cultura precisa ser recriado. A administração do (ministro) Francisco Weffort foi desastrosa. Foram criadas quatro secretarias que não deram conta dos projetos que já existiam", afirma Novaes. "Na Funarte, havia órgãos específicos para fotografia, artes plásticas, literatura e outros segmentos. Nada foi criado para substituir esses órgãos." A indignação do ex-diretor do Centro de Estudos e Pesquisa da Funarte não pára por aí. Novaes detecta também uma "inércia" nas entidades vinculadas ao MinC, que, segundo ele, foram "burocratizadas". "É necessário que o próximo governo promova uma sintonia entre elas e crie um conceito de cultura, para não cair no vazio de manter instituições que dependam da estrutura do ministério."

As leis de incentivo não escaparam das críticas de Novaes. Ele cobra um controle mais incisivo sobre a distribuição dos recursos provenientes da renúncia fiscal. "Tudo é feito em nome da privatização da cultura por meio das leis de incentivo, o que é um desastre. As empresas estatais realizam enormes investimentos em cultura sem que haja um órgão que discuta a aplicação dessas verbas e organize uma política para esses investimentos." Novaes suspende a artilharia apenas quando fala das propostas de Lula, para ele "o único candidato que tenta definir uma política de cultura para o país".

Uma das conclusões do manifesto divulgado pelo Instituto Pensarte destaca que "a transformação social do Brasil só será possível por meio da cultura". Resta agora saber se, daqui a quatro anos, teremos, mais uma vez, a sensação de que já ouvimos essa conversa em algum lugar.