Título: Europa indignada com abusos dos EUA
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 09/12/2005, Internacional, p. A8

Luta ao terror Rice tenta mas não abranda a onda de indignação européia devido às tapeações da CIA

Não é de hoje que a esquerda européia acalenta o mito de que agentes da CIA seqüestram pessoas nas ruas e as jogam em prisões secretas em todo o mundo para submetê-las a duros interrogatórios. Agora, pela primeira vez, os EUA admitiram que ao menos parte disso é verdade. Por décadas, os EUA (e outros países) realizaram operações clandestinas para transportar suspeitos de terrorismo do país em que foram capturados para "terceiros países", "onde podem ser interrogados, mantidos presos ou levados à Justiça", declarou Condoleezza Rice nesta semana. Entretanto, insistiu a secretária de Estado, no início de uma viagem de cinco dias à Europa, os EUA "não autorizam, toleram ou aprovam tortura sob nenhuma circunstância". Faz parte da política americana respeitar obrigações assumidas em tratados, entre eles aqueles cobertos pela Convenção da ONU Contra Tortura, dos quais o país é signatário. Os EUA são um "país de leis" e acreditam no império da lei, disse ela. Os EUA sempre respeitaram, e continuarão a respeitar, a soberania de outros países que cooperam com os americanos em sua guerra contra o terror. O objetivo de Rice foi tranqüilizar os aliados europeus, que ainda estão enfurecidos devido às informações de que seus próprios espaços aéreos e territórios tinham sido usados pela CIA para suas operações clandestinas, envolvendo, inclusive, prisões secretas. Infelizmente, é tanta a suspeita em relação aos americanos (em vista do tratamento dispensado a suspeitos de terrorismo mantidos em Guantánamo e na prisão de Abu Ghraib, no Iraque), que os europeus imediatamente submeteram a um pente fino, em busca de furos, a declaração meticulosamente elaborada de Rice. E o pior é que encontraram um chuveiro. Rice disse, por exemplo, que os EUA não usam o espaço aéreo ou aeroportos de outros países para transportar prisioneiros a um terceiro país onde "serão torturados". Mas a Convenção Contra Tortura torna ilegal transportar qualquer pessoa para um país onde há "substanciais razões" para crer que eles possam vir a ser torturados. Rice recusou-se a confirmar ou negar a existência de prisões secretas da CIA usadas para interrogar suspeitos de terrorismo na Europa. Qualquer revelação poderia comprometer o sucesso de ações de inteligência, policiais ou militares, explicou ela. Mas, em vista de ela ter admitido que pessoas detidas foram transportadas para terceiros países para ser interrogadas, é presumível que de fato existam centros de detenção não revelados - ou que tenham existido no passado -, onde tais interrogatórios têm lugar. Por que instalá-los fora dos EUA e mantê-los secretos? A onda de indignação foi causada por uma notícia em 2 de novembro no "Washington Post". O jornal afirmou ter evidências da existência de prisões clandestinas da CIA em pelo menos oito países, alguns deles na Europa Oriental. Polônia e Romênia, os suspeitos mais prováveis, negam. A rede ABC, citando atuais e ex-funcionários da CIA, diz que esses campos, onde estariam 11 suspeitos de alto escalão da al-Qaeda, foram transferidos para o norte da África. Sob as Convenções de Genebra, um país envolvido num conflito armado internacional deve notificar o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) sobre qualquer qualquer prisioneiro e permitir que a organização o visite. Mas, como a "guerra contra o terror" não é classificada como um conflito internacional, o CICV pode apenas "oferecer seus serviços" de fiscalização de campos americanos - a Cruz Vermelha não tem direito de acesso. O governo Bush permitiu inspeções da Cruz Vermelha em Guantánamo e em prisões no Afeganistão e no Iraque, mas se recusou a responder a repetidos pedidos de notificação sobre (e acesso a) campos de detenção secretos. Rice insiste em que os EUA sempre respeitam a "soberania" de outros países. Quando um governo estrangeiro decide cooperar numa operação de seqüestro e deportação, isso é perfeitamente permissível pela lei internacional, diz ela. Isso é correto, desde que o detido não tenha sido seqüestrado ilegalmente e que não seja enviado a um país onde possa ser maltratado. Ajudar outro país a descumprir a legislação internacional é, em si mesmo, um desrespeito à lei. As acusações européias que mencionam de "centenas de vôos de tortura" da CIA para um novo Arquipélago Gulag na Europa Oriental são "tão ridiculamente exageradas a ponto de serem risíveis", protestam autoridades americanas. Não publicamente, elas sugerem que os europeus são hipócritas: muitos dos que agora reclamam da política antiterrorista americana aceitaram as operações da CIA em seus territórios. Tudo isso é, provavelmente, verdadeiro. Mas seqüestrar pessoas nas ruas de um país estrangeiro e mantê-las incomunicáveis, sem acusações, em locais não revelados e durante meses, ou até mesmo anos - sem sequer conhecimento de suas famílias - é ilegal, com ou sem tortura. Esse de tipo de prisões invisíveis são explicitamente proibidas, nos termos de uma nova Convenção sobre Desaparecimento à Força, atualmente em elaboração pela ONU. Elas também serão ilegais, caso seja aprovado o projeto de lei americano apresentado pelo senador John McCain, que visa proibir tortura ou outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes por parte de pessoal militar americano ou agentes de inteligência onde quer que estejam. Autoridades do governo Bush argumentaram que a Convenção Contra a Tortura aplica-se apenas a atos praticados dentro da jurisdição territorial americana. Os críticos alegam que isso explica porque tantos centros de interrogatório dos EUA (como Guantánamo) estão fora de suas fronteiras. Aparentemente, Dick Cheney empenhou-se vigorosamente contra a emenda McCain, exatamente porque ela eliminaria qualquer ambigüidade, proibindo o uso de técnicas cruéis e desumanas em qualquer país e por quaisquer pessoa. Nesta semana, Rice pareceu ter tomado outro curso: ela disse que a proibição da ONU a tortura ou tratamento cruel contra os detidos aplica-se a qualquer funcionário ou militar americano (inclusive da CIA) em todo o mundo. A Casa Branca insistiu em que essa é a "política em vigor". Mas, se a secretária de Estado diz a verdade, por que o vice-presidente se empenha para manter a CIA imune à lei McCain? Durante a visita de Rice a Berlim, Angela Merkel, a nova premiê alemã, anunciou que os EUA tinham "aceito" que haviam "erroneamente levado" um cidadão alemão a uma prisão no Afeganistão. Khaled al-Masri, que está agora processando a CIA por detenção ilegal, afirma ter sido seqüestrado por agentes americanos quando passava férias com sua família na Macedônia, em 2003. No Afeganistão, diz al-Masri, ele ficou preso por cinco meses e foi torturado, antes de ser libertado - sem formulação de acusações -, após descobrir-se que ele tinha sido confundido com um suspeito, homônimo, de pertencer à al-Qaeda. Embora se recusando a comentar o caso de Masri, Rice admitiu que "qualquer política por vezes resulta em erros". Os europeus não são os únicos que precisam ser convencidos. Nesta semana, Louise Arbour, a alta comissária da ONU para direitos humanos, advertiu que a proibição absoluta à tortura poderá tornar-se uma vítima da "guerra ao terror". Sem referir-se abertamente aos EUA, ela criticou "governos de diversos países", para os quais o mundo mudou e por isso as antigas regras deixaram de ser aplicáveis. Ninguém ainda provou "a mudança do mundo", insistiu. A palavra está com Rice.