Título: Câmbio e escala explicam vantagem chinesa
Autor: Sérgio Bueno
Fonte: Valor Econômico, 14/12/2005, Brasil, p. A3

Comércio exterior Calçado brasileiro é mais caro, mas salário e imposto representam pequena parte da diferença

Real valorizado e custos de produção mais elevados estão fazendo a indústria de calçados do Brasil perder a briga com os concorrentes chineses, maiores fabricantes e exportadores mundiais do setor. Tanto no mercado internacional quanto no interno, os calçados fabricados na China chegam a custar menos da metade do que os similares brasileiros e estão provocando fechamento de fábricas e demissões entre as empresas do país. O drama ainda é mais gritante no mercado externo. Impedidas de compensar integralmente a variação cambial com repasses aos preços em dólares, muitas indústrias estão exportando com prejuízo. Segundo a Federação Democrática dos Trabalhadores nas Indústrias de Calçados do Rio Grande do Sul, principal pólo exportador do setor no país, 57 empresas ou unidades já fecharam no Estado neste ano, desempregando 17,1 mil trabalhadores. Os casos mais recentes foram os da Azaléia e da Calçados Dilly, que desativaram unidades em São Sebastião do Caí e Mato Leitão e demitiram 800 e 300 funcionários, respectivamente. Um estudo da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Unido) apresentado em setembro, no México, revelou que em 2003 o preço médio do calçado chinês no mercado internacional era de US$ 2,77 o par. No mesmo período, os produtos brasileiros custavam no exterior US$ 8,21, conforme a Abicalçados, que reúne as indústrias do setor no país. Desde então, o dólar caiu mais 22% em relação ao real e piorou a situação cambial para as empresas, que hoje têm de cobrar um preço médio de US$ 9,95 no acumulado até outubro. No Brasil a situação também muda de região para região, depois que grandes fabricantes brasileiros migraram para o Nordeste, atraídos por generosos pacotes de incentivos fiscais e benefícios que incluem até a cessão de instalações industriais prontas para funcionar. O movimento começou nos anos 80, mas se acentuou na década seguinte e hoje boa parte das principais empresas do setor, como Grendene, Azaléia, Calçados Bibi, Dakota, Picadilly e Paquetá têm fábricas no Ceará, Bahia, Sergipe e Paraíba. Com os incentivos e com a mão-de-obra até quase 40% mais barata em alguns casos, o preço médio do calçado exportado pelos Estados nordestinos cai para US$ 4,85 o par (valor médio acumulado até outubro). A região embarcou 51,9 milhões de pares ao exterior em dez meses, ou 32,8% do total do país no período, gerando receita de US$ 252,4 milhões, equivalente a 16% do faturamento global do setor com exportações no Brasil. No Rio Grande do Sul, que despachou 83,4 milhões de pares por US$ 1,090 bilhão, o valor médio sobe para US$ 13,07. A diferença também aparece nos produtos vendidos no mercado interno. Um calçado produzido no Nordeste pode ser vendido por até 35% menos do que um artigo similar fabricado no Rio Grande do Sul para proporcionar a mesma margem de lucro, diz o executivo de uma grande empresa gaúcha. Segundo o consultor da Abicalçados, Ênio Klein, que acompanhou a apresentação do estudo da Unido, embora o preço da mão-de-obra na China seja inferior ao do Brasil, na faixa de US$ 0,59 por hora contra pouco mais de US$ 1 no Rio Grande do Sul e US$ 0,75 no Nordeste, sem encargos sociais, este não é o maior problema da perda de competitividade no exterior. A produtividade das indústrias brasileiras é pelo menos duas vezes maior e com isso, enquanto a participação do valor do trabalho sobre o custo de produção do calçado no país chega no máximo a 40% (em artigos de maior valor agregado), mesmo com encargos, no caso chinês o peso chega a 60%. Os impostos também não são a principal dor de cabeça nas exportações. Em primeiro lugar porque a estrutura tributária dos dois países é relativamente semelhante. A China cobra das empresas 3% sobre o faturamento para o governo local, mais um imposto sobre valor agregado de 17%, semelhante ao ICMS brasileiro, além de 11%, 22% e 30% sobre o lucro para empresas estrangeiras, locais ou estatais, respectivamente. Os investidores estrangeiros, porém, desfrutam de benefícios fiscais que podem chegar a 50% do imposto sobre o lucro, relata a Unido. Os chineses não têm de arcar, como os brasileiros, com contribuições como PIS e Cofins, mas as exportações estão isentas de todos esses tributos. A questão, aqui, é que as empresas nacionais estão enfrentando dificuldade para receber os créditos de ICMS acumulados na produção de artigos para exportação devido à briga entre governos estaduais e federais sobre os ressarcimentos provocados pela desoneração estabelecida pela Lei Kandir a partir de 1997. "O problema é o câmbio", diz Klein. Segundo ele, as indústrias brasileiras têm ainda desvantagens nas áreas de infra-estrutura, logística e burocracia e produzem em escala bem menor do que as concorrentes chinesas, o que aumenta seus custos. Com 1,3 bilhão de habitantes, a China produzirá 7,65 bilhões de pares de calçados este ano, sendo cerca de 40% para o mercado interno, indica o relatório da Unido. No Brasil, a produção total não passa dos 700 milhões de pares, estima a Abicalçados. Nos produtos de maior valor agregado, na faixa de US$ 15 o par, a diferença de preços entre os calçados chineses e brasileiros cai para cerca de 20%, calcula o presidente da Assintecal, Eduardo Kunst. Nesse nível, os importadores europeus e americanos ainda preferem comprar do Brasil, que oferece mais qualidade, design e tecnologia, diz o executivo de outra grande empresa exportadora. "Mas se a diferença passa dos 30%, não tem eficiência que resolva", afirma. Conforme a Abicalçados, o resultado da desvantagem competitiva do Brasil no mercado internacional aparece nas estatísticas das exportações. De janeiro a outubro, os embarques apresentaram leve crescimento em valor em relação ao mesmo período de 2004, para US$ 1,57 bilhão, mas recuaram 10% em volume, para 158,2 milhões de pares, e devem fechar 2005 abaixo dos 190 milhões de pares, ante 212 milhões no ano passado, estima Klein.