Título: Nas premissas do Chile, acordo com EUA atinge metas
Autor: Humberto Saccomandi
Fonte: Valor Econômico, 14/12/2005, Internacional, p. A9

Comércio País ganha em produtos semimanufaturados e primários, e compra mais manufaturados americanos

Após quase dois anos em vigor, o tratado de livre comércio do Chile com os Estados Unidos cumpriu o seu propósito de ampliar a relação comercial bilateral. Mas a experiência chilena pode também indicar os limites desse tipo de acordo e inspirar cautela em quem atualmente negocia com os americanos. Os próprios chilenos dizem que, devido às especificidades da economia chilena, a mesma receita talvez não seja aplicável nos países vizinhos. Do ponto de vista de estimular o comércio, o acordo é um sucesso, ainda que tenha favorecido mais os EUA até agora. As exportações do Chile para o mercado americano cresceram 67% (veja quadro abaixo) nos primeiros nove meses deste ano em relação aos primeiros nove meses de 2003 (antes de o acordo entrar em vigor, em janeiro de 2004). Já as importações dos EUA cresceram 95% no mesmo período, segundo o Censo dos EUA. Esses números podem diferir um pouco das estatísticas chilenas. Essa elevação do comércio supera a média dos principais países sul-americanos. As exportações para os EUA cresceram menos, no mesmo período, no Brasil (35,3%), na Argentina (41,5%) e na Colômbia (31,5%), sempre segundo dados americanos. Já o Peru superou o desempenho chileno, elevando suas exportações em 125%. Essa comparação, porém, tem complicações. Peru e Colômbia têm preferências tarifárias nos EUA, por conta da luta contra o narcotráfico. Já os dados argentinos são distorcidos pela crise econômica, que fez despencar as importações em 2003. Nenhum desses países, porém, registrou a alta nas importações dos EUA verificadas no Chile. Mas isso não assusta os chilenos. "Esse aumento maior das importações americanas era esperado", diz Osvaldo Rosales, diretor da divisão de Comércio Internacional da Cepal e que foi negociador-chefe do Tratado de Livre Comércio (TLC) pelo Chile. Segundo ele, a partir de 1997 houve uma queda nas importações dos EUA, por conta de acordos com Canadá e México. Empresas americanas passaram a exportar para o Chile via esses dois países. Com o TLC, parte dessas expor-tações americanas voltou a ser feita dos EUA. Além disso, com o TLC com a União Européia, em 2003, houve um surto de substituições de importação dos EUA para a UE. Mas ele não acredita que isso seja uma tendência. "O crescimento do comércio bilateral deve se equilibrar em dois ou três anos [após a implementação do acordo]", disse. Ou seja, em 2006 ou 2007. Guillermo Pattillo, professor da Faculdade de Administração e Economia da Universidade de Santiago (Usach), lembra que há uma série de forças atuando para o incremento do comércio com os EUA, e o TLC é uma delas. Um outro fator importante é a expansão econômica do Chile, que está no segundo ano seguido acima de 5%. "A economia chilena está crescendo muito mais que a brasileira, por exemplo, e é normal que as importações cresçam mais", disse. Mas, além da evolução quantitativa, uma avaliação qualitativa da relação comercial, por setores da economia, mostra que as exportações chilenas para os EUA cresceram em produtos primários e semimanufaturados, enquanto as importações dos EUA cresceram em produtos manufaturados. Isso parece confirmar o receio das associações empresariais brasileiras quanto à abertura do setor. O quadro acima compara o comércio, por setores, de 2003 (acumulado do ano inteiro) com 2005 (acumulado de meses, até setembro). O ganho chileno se concentra em produtos agrícolas, minerais não metálicos, madeira, derivados de petróleo e carvão, produtos químicos e metais. Já o ganho americano está concentrado em produtos mais tecnológicos, de maior valor agregado, como máquinas, eletrônicos e informática, eletrodomésticos e equipamentos de transporte, além de produtos químicos. Segundo o ex-negociador Rosales, isso também já era esperado e faz parte de uma ampla discussão sobre desenvolvimento que já ocorreu no Chile. "Uma economia pequena, como a do Chile, dificilmente pode aspirar a ser produtora de bens sofisticados, como eletrônicos." O professor Pattillo, da Usach, concorda. "O incremento do comércio por setor simplesmente reflete a estrutura de vantagens comparativas dos dois países." Para Rosales, o desafio do Chile é "agregar valor crescente a suas exportações tradicionais", como frutas, peixe, vinho, metais e minerais. Segundo ele, o TLC tem sido eficiente para isso, pois estimula as empresas a investir na sofisticação do produto e na estrutura de distribuição e marketing. "Um modo importante de agregar valor é incorporando 'brands', marcas conhecidas. O salmão chileno não tem uma marca. Já o vinho está mais à frente nesse sentido." Ele destaca outro efeito positivo do TLC sobre os setores tradicionais da economia chilena. "O custo do transporte é relevante para a nossa competitividade. Por isso, é importante melhorar a estrutura de transporte com importações." Há consenso no establishment político chileno em relação a esse projeto de inserção internacional. Tanto que a abertura comercial não foi nem tema de campanha eleitoral. Os dois candidatos ao segundo turno presidencial, a socialista Michelle Bachelet, e o conservador Sebastián Piñera, devem manter a política de acelerar acordos comerciais do atual presidente, o socialista Ricardo Lagos. Mas Rosales alerta que a política chilena de acesso sistemático a mercados globais (o Chile é um dos países mais abertos do mundo) se baseia em características específicas da economia local e não é necessariamente aplicável em outros países. "Países grandes como o Brasil têm por definição um coeficiente menor de abertura comercial. A participação das exportações no PIB tende a ser menor", disse. Nem todos, porém, estão satisfeitos com o TLC com os EUA. A ONG Aliança Chilena por um Comércio Justo e Responsável diz que não houve um salto qualitativo no comércio chileno (como os dados confirmam), que não houve uma prometida criação de empregos, que a exportação se concentrou mais em poucas empresas, que não houve uma elevação de investimentos americanos no país e que a balança financeira pende mais fortemente a favor dos EUA, com aumento da remessa de capitais pelas empresas. Num documento de novembro sobre o impacto do TLC, a ONG afirma que o acordo nada fez para ajudar a resolver os principais problemas sociais do Chile. Pattillo diz que desde o início não havia expectativa de forte criação de empregos, pois os setores exportadores que mais foram beneficiados não são intensivos em trabalho, mas sim em capital. Ele ressalva ainda que "o efeito maior do TLC nunca se esperava que fosse no fluxo comercial, mas sim no risco-país, no mercado mercado financeiro. E hoje o Chile tem de longe o menor risco-país da América Latina". O risco do Chile, medido pelo banco de investimentos JP Morgan, estava ontem em 76 pontos, contra 308 do Brasil.