Título: Livre comércio contra a pobreza - III
Autor: William R. Cline
Fonte: Valor Econômico, 14/12/2005, Opinião, p. A11

Se houver liderança e convicção, Hong Kong poderá obter condições melhores para os países pobres

Os países em desenvolvimento deveriam insistir em inflexível monitoração dos subsídios pela Organização Mundial do Comércio (OMC) para assegurar que quaisquer subsídios não controlados na caixa verde não se constituam, na prática, em estímulos à produção. Isso será particularmente importante, tendo em vista a grande "migração" de subsídios, na União Européia (UE), da caixa azul para a verde, programados na reforma de 2003 da Política Agrícola Comum (PAC). Além disso, será crucial para monitoração pela OMC que os relatórios sobre subsídios sejam completados dentro de seis meses após o fim do "ano subsídio". Hoje, a defasagem de até quatro anos para publicação dos relatórios torna risível a intenção fiscalizadora. Na negociação de um acordo, seria extremamente positivo que importantes países em desenvolvimento, como o Brasil e a Índia, se dispusessem a adotar profundos cortes em suas - por vezes excessivamente altas - tarifas agrícolas. Embora as tarifas efetivamente aplicadas sobre produtos agrícolas pelos países em desenvolvimento sejam, em média, de 30% - portanto um pouco abaixo da média efetiva de 36% no caso dos países industrializados -, para alguns produtos as tarifas podem ser de 100%. As empresas agrícolas americanas, por exemplo, ficariam bem mais inclinadas em se comprometer com o desmantelamento de subsídios vinculados à produção nos EUA se vissem uma oportunidade de assegurar contratualmente reformas em outros países. Adicionalmente, as tarifas comprometidas junto à OMC são freqüentemente tão altas que sua aplicação efetiva seria prejudicial ao país em questão. Em vez de manter as tarifas comprometidas tão altas a ponto de se prejudicarem, os países em desenvolvimento fariam melhor em se apoiarem em mecanismos de salvaguarda temporários autorizados pela OMC, em caso de algum surto nas importações de produtos agrícolas, e em insistir para que os países industrializados desacoplem os subsídios da produção, de modo que haja menor risco de tais surtos. A liberalização do comércio agrícola deverá elevar substancialmente os preços mundiais dos produtos agrícolas, à medida que os países industrializados deixem de estimular artificialmente a oferta e passem a importar mais dos países em desenvolvimento. Como cerca de 75% dos pobres do mundo trabalham no setor agrícola e tendem a se beneficiar da melhoria de oportunidades para essas exportações, há razões para crer que a liberalização dos mercados agrícolas dos industrializados ajudariam a reduzir a pobreza mundial. Mas alguns analistas têm argumentado que os países menos desenvolvidos (PMDs) seriam prejudicados por serem importadores de alimentos, e iriam defrontar-se com preços mais altos após a liberalização mundial. Meu estudo de 2004 examinou essa questão e concluiu que a preocupação é infundada. Os PMDs têm efetivamente um déficit comercial no setor alimentício, mas têm déficits ainda maiores em industrializados, devido a grandes déficits comerciais gerais financiados por ajuda. No fim das contas, eles têm vantagens comparativas nos setores de alimentos e agricultura, assim como a maioria dos países em desenvolvimento. Assim, se calcularmos detalhadamente os efeitos diretos e indiretos, os PMDs beneficiariam-se da liberalização do comércio agrícola mundial. Eles registram ganhos em seus termos de troca que deverão mais do que compensar quaisquer prejuízos diretos decorrentes do encarecimento dos alimentos. Recentes estudos de modelagem do Banco Mundial confirmam isso para a África Subsaariana. E embora seja verdadeiro que o maior PMD, Bangladesh, tenha vantagens comparativas em manufatura, e não em agricultura, o país deve beneficiar-se da Rodada Doha em virtude da liberalização dos mercados de produtos industrializados. No que diz respeito aos habitantes de outros PMDs, apenas 25% vivem em países com desvantagens comparativas na produção de alimentos. Os outros 75% deverão beneficiar-se da liberalização mundial no setor agrícola.

Seria muito positivo que países em desenvolvimento, como Brasil e Índia, se dispusessem a fazer profundos cortes em suas tarifas agrícolas

Outra questão extremamente debatida é se o livre comércio mundial prejudicaria efetivamente os PMDs de modo mais geral, porque reduziria ou eliminaria suas vantagens especiais de tarifas preferenciais (denominado "erosão de preferências"). Essa discussão tende a não levar em conta o cenário como um todo. Se houvesse livre comércio mundial, os PMDs ganhariam mais com os novos mercados em muitos países onde não têm livre entrada, inclusive em países em desenvolvimento e de renda média, do que perderiam mediante a erosão de preferências nos EUA e na UE. Além disso, os PMDs deverão beneficiar-se da liberalização de seus próprios mercados. A liberdade de acesso para os PMDs poderia ser substancialmente ampliada como parte de um pacote geral. Os riscos de encarecimento dos alimentos para os PMDs e os prejuízos resultantes da erosão de preferências precisam ser abordados, porque senão a Rodada Doha poderá ser bloqueada pela oposição dos PMDs. Até agora, a resposta de política internacional sobre a questão tem sido propor "ajuda em troca de comércio" - ou seja, maior ajuda ao desenvolvimento destinada aos PMDs que poderiam sofrer erosão de preferências, em parte justificada pela necessidade de aperfeiçoar sua infra-estrutura para assegurar capacidade de responder a novas oportunidades de comércio. Técnicos do FMI e do Banco Mundial propuseram um programa de ajuda totalizando entre US$ 200 milhões e US$ 400 milhões no curso de cinco anos por intermédio do Referencial Integrado multi-agências para assistência técnica relacionada com comércio. Entretanto, surge a pergunta usual: seriam esses recursos financeiros consumidos às custas de outros programas? Porta-vozes dos PMDs sugeriram, de qualquer modo, que o montante oferecido é muito pequeno para ser significativo (cerca de US$ 2 milhões por ano por país). Em vez de (ou além de) ajuda em troca de comércio, os países industrializados deveriam ampliar seus atuais direitos de entrada preferencial por parte dos PMDs para um acesso totalmente livre, conforme proposto pela UE. Os países de rendas médias deveriam aderir a esse esforço oferecendo entrada livre (ou pelo menos preferencial) a produtos exportados pelos PMDs. Essa importante expansão da base por acesso livre e preferencial deverá gerar ganhos que superem quaisquer prejuízos resultantes da redução na margem preferencial em cima da base existente. Os principais países envolvidos em comércio têm a oportunidade de transformar a Rodada Doha em agente efetivamente significativo de estímulo ao desenvolvimento econômico e à redução da pobreza mundial. Os países industrializados deveriam comprometer-se em fazer grandes cortes em seu protecionismo, especialmente em agricultura e em tarifas de pico em outros setores, inclusive têxteis e artigos do vestuário. Os países em desenvolvimento e renda média deveriam baixar suas tarifas elevadas em montante suficiente para assegurar uma redução significativa nas tarifas aplicadas tanto a produtos agrícolas como a bens industrializados. Por seu turno, tanto os países industrializados como os em desenvolvimento de renda média deveriam comprometer-se em ajudar os PMDs a beneficiar-se do comércio - os primeiros proporcionando total cobertura de produtos, com livre entrada assegurada, importados de PMDs, e os últimos oferecendo novos acessos irrestritos ou preferenciais. Com uma vigorosa liderança política, será factível um resultado nessa linha para a Rodada Doha - e seu êxito será uma contribuição importante para o esforço por desenvolvimento mundial e contra a pobreza mundial.