Título: Quitação de dívida com FMI recupera biografia do país
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 15/12/2005, Opinião, p. A14

Ao decidir quitar integralmente a dívida no Fundo Monetário Internacional, desembolsando ainda este mês cerca de US$ 15,5 bilhões das reservas cambiais, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva está dando um passo decisivo para a recuperação da biografia do país, marcada nas duas últimas décadas por moratórias e pacotes de socorro financeiro montados às pressas pelo governo americano com apoio do FMI e de demais organismos multilaterais. Está sendo encerrada uma fase melancólica da história recente da economia brasileira, ao mesmo tempo em que o governo vem trocando os títulos da dívida externa reestruturada em 1994 por novos papéis, também livres do estigma da moratória de 1987. De 1999 para cá o governo traçou uma política macroeconômica consistente e, a despeito de eventuais equívocos de dosagem em um ou outro instrumento, vem colhendo, com o regime de taxas de câmbio flutuantes, rigor fiscal e inflação sob controle, um novo perfil de contas externas. Deixou para trás a excessiva dependência do ingresso de capitais estrangeiros para financiar as contas do balanço de pagamentos e reduziu substancialmente a exposição do país às mudanças de humor dos mercados financeiros internacionais. Hoje o balanço de conta corrente é superavitário em cerca de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) - o que nem é necessário manter por períodos prolongados de tempo, dado que a economia brasileira é necessariamente importadora de capitais; e a parcela da dívida interna indexada à taxa de câmbio caiu cerca de 50% para apenas 3% da dívida mobiliária total. Trata-se de uma espetacular reviravolta patrocinada pela conjunção das políticas macroeconômicas estabelecidas em 1999 e mantidas pelo governo Lula. Quitar a dívida no FMI, passados nove meses da extinção dos acordos formais que foram retomados em dezembro de 1998 e renovados ano a ano até março último, quando terminou o último acerto "stand by", não é produto de uma decisão tomada com base na ideologia da soberania nacional tantas vezes realçada no slogan "Fora FMI". É, sim, fruto de uma bem sucedida safra de resultados que permitiram a acumulação de reservas cambiais pelo Banco Central. As reservas ajustadas (descontados os recursos do FMI), que no final de 2002 chegaram ao mínimo de US$ 16,3 bilhões, em janeiro de 2005 já haviam subido para US$ 30 bilhões, atingindo US$ 50,8 bilhões em novembro, segundo informações oficiais do BC. Esses são fatos que, obviamente, não eliminam as críticas e apreensões a respeito da valorização da moeda doméstica frente ao dólar. Mas formam a moldura que levou o país a sair de uma situação em que a total ausência de crédito junto aos mercados internacionais o obrigou a recorrer ao fundo como emprestador de última instância. É importante ressaltar que o Brasil, hoje, conseguiu amealhar os mais sólidos indicadores de solvência externa desde os anos 70 e, em alguns casos, os melhores da história. Um avanço que vem se traduzindo em redução do prêmio da dívida externa, embora ainda seja frágil o reconhecimento desse esforço pelas agências de rating. Do lado político, o fato de o governo do presidente Lula ter avalizado um acordo de transição em 2002, depois renovado até março último, representou um amadurecimento de uma boa parte do PT, para quem o FMI deixou de ser visto como agente do imperialismo determinado a explorar os países periféricos, para ser uma instância a quem os países recorrem, em busca de socorro financeiro, quando mais ninguém lhes dá acesso a financiamentos, seja por turbulências nos mercados ou, o que é mais provável, por erros cometidos internamente na gestão da política econômica. Na campanha pela reeleição, Lula poderá até dizer que o PT livrou o Brasil das amarras do Fundo Monetário. Mas não é isso que interessa, nem foi esse o propósito do pré-pagamento da dívida. Quitou-se a dívida porque o país vive hoje um período de normalidade nas suas contas, superou as crises cambiais e acumulou reservas para isso. Não havia por que continuar pagando juros dos financiamentos colocados à disposição do Brasil se a disponibilidade de caixa permitia limpar esse passivo.