Título: Governo Lula sabota governo Lula
Autor: Claudia Safatle
Fonte: Valor Econômico, 15/12/2005, Brasil, p. A2

Sobrou um cadáver da discórdia pública entre os ministros da Fazenda, Antônio Palocci, e da Casa Civil, Dilma Rousseff, vítima da mistura, num mesmo e confuso debate, de vários problemas que por sua complexidade mereceriam discussões serenas e profundas: o ajuste fiscal de longo prazo centrado no controle do gasto público, inevitável, mas adiado para o próximo governo; a precária execução orçamentária deste ano, que ao acumular excesso de superávit, colocou em lados opostos a equipe econômica e todos os demais ministros do governo; e as incertezas quanto ao futuro das denúncias que atormentam o passado de Palocci na prefeitura de Ribeirão Preto, que deixaram seus adversários no governo inquietos e em busca de um substituto no comando da política econômica. Da saraivada de tiros, restou morto, para este governo, o projeto de um programa fiscal com fôlego para os próximos dez anos e com foco no controle do gasto público, em substituição ao desenfreado aumento da carga tributária. Essas questões, emboladas num só pacote e transformadas em 'farinha do mesmo saco', foram agravadas com a notícia da retração do PIB no terceiro trimestre - que veio confirmar a percepção corrente de que o Banco Central produziu uma overdose de juros de setembro de 2004 a agosto deste ano. Deu forças à turma do "eu não disse?". A decisão do Copom, na quarta feira, de prosseguir na mesma toada gradualista, cortando apenas 0,5 ponto percentual da taxa Selic, pareceu pirraça da diretoria do BC, uma resposta à altura das pressões públicas contra a política de juros. O desabafo do ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, que de Hong Kong expressou o clima de "desânimo" que tomou conta do país, por faltar ao governo, nas palavras do ministro, "objetivos", não foi um ato isolado de um ministro que está há meses brigando contra a valorização cambial, mas o retrato do sentimento que domina a administração pública federal. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, agora cercado de maior proximidade de Dilma Rousseff e do ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes - sendo que ambos têm pensamentos muito similares para a condução da política econômica - está totalmente voltado para a campanha da reeleição. Suas decisões refletirão essa agenda. O reajuste do salário mínimo terá que ser expressivo o suficiente para agradar aos eleitores que ele espera ter nas classes de renda mais baixa, no funcionalismo público estadual e municipal. Deverá ser algo entre R$ 340,00 e R$ 350,00. Na proposta orçamentária para 2006, o valor do salário mínimo seria de R$ 321,00. Para cada R$ 1,00 de aumento, eleva-se a despesa da previdência social em cerca de R$ 160 milhões. Portanto, apenas essa decisão custará mais algo em torno de R$ 4,5 bilhões não previstos na programação orçamentária, num setor em que o déficit deste ano aproxima-se de R$ 40 bilhões. O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, fez Lula crer que patrocinará a melhor política de distribuição de renda através do salário mínimo. Será complicado conciliar o maior reajuste possível do mínimo com a correção da tabela do Imposto de Renda. Se esta for de 10%, representará abrir mão de uma arrecadação de R$ 2,8 bilhões. A recomendação da área econômica é fazer uma opção: dar o maior reajuste possível ao mínimo e não corrigir a tabela do IR. Mas isso impediria Lula de afagar a classe média, desapontada com seu governo. Para os pobres, a Pnad mostra que o nível de pobreza caiu e a intenção é continuar elevando a abrangência da Bolsa Família.

Ajuste de longo prazo: um cadáver insepulto

Já totalmente absorto na questão eleitoral e distanciado da influência que antes se permitia ter de Palocci -- até porque Dilma ocupou com destreza esse espaço - Lula não quer alimentar debates sobre temas sobre os quais não tem convicções. É bem verdade que chegou a se animar, por volta de julho, com a discussão sobre um projeto fiscal de mais longo prazo que lhe desse condições de colher, antecipadamente, uma boa redução da taxa de juros, permitisse maior crescimento da economia e, no futuro, abrisse uma janela para redução da carga de impostos. Agora mudou. Não quer mais ouvir essas conversas e determinou que se cumpra a meta de superávit primário de 4,25% do PIB em 2006. Nem mesmo se chegou a discutir seriamente a necessidade de se produzir um superávit maior. A idéia de elevar a meta para 5% do PIB, ou mais recentemente, para 4,75% do PIB, ficou restrita à área técnica do governo e nunca foi submetida formalmente ao presidente. A contenda terminou com Palocci e o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, de um lado, Dilma, Ciro Gomes e Marinho de outro, e com Lula desconfiado que estava sendo meio que "operado" por Palocci no jogo do ministro da Fazenda de ameaçar com o sai-não sai. O Copom, sob 'stress' e diante dos conflitos abertos na briga pelo destino da política macro-econômica, fez o que dele se esperava, não por pirraça, mas por cautela. Palocci, agora, procura reconstruir sua posição no governo, mas sua situação não é sólida. E, é bom que se diga, Dilma nunca pediu desculpas a Bernardo por ter chamado a proposta fiscal que ele estava elaborando de "rudimentar". Esse é, enfim, o quadro da situação do governo hoje. Lula está voltado para a reeleição, com Dilma e Ciro muito próximos dos seus ouvidos. Palocci e Bernardo tentam dar algum oxigênio às demandas por gasto que chegaram ao ápice nos últimos dias, abrindo um pouco as torneiras do caixa do Tesouro. Mas não podem comprometer o ajuste fiscal que, goste-se ou não, é destinado a reduzir a dívida líquida do setor público como proporção do PIB. Tinham planos, mas perderam em meio a um debate embolado onde não ficou claro quem é a favor do que, quem é contra quem e o que quer por no lugar. Os planos, que se traduziriam num novo programa fiscal, só deverão ser resgatados pelo próximo governo. O dilema é saber como será a condução de 2006, última chance para o PT deixar ao país um legado que vá um pouco além da consolidação da estabilidade econômica com alguma redução da pobreza. Visto de hoje, não está afastado o risco de 2006 repetir as angústias de 2002, porque o governo Lula sabota, permanentemente, o governo Lula.