Título: Oportunidade perdida
Autor: Affonso Celso Pastore e Maria Cristina Pinotti
Fonte: Valor Econômico, 03/01/2006, Opinião, p. A8

Brasil teve um crescimento econômico frustrante

Em recente visita ao Brasil o economista-chefe do BID, Guillermo Calvo, comparou o desempenho de várias economias latino-americanas. Em sua amostra constavam países tão diferentes quanto: Venezuela, com um governo populista e uma economia completamente dependente de petróleo; Argentina, avançando na direção do populismo e absorvendo as conseqüências de um default; México, com governo de esquerda e economia integrada aos EUA; Chile, com décadas de austeridade fiscal e uma economia tão aberta quanto a do México, porém com um comércio internacional geograficamente diversificado; e Brasil, com um governo de esquerda, não populista, porém muito atrasado no programa de reformas. Com esta diversidade de condicionantes domésticos esperar-se-iam desempenhos macroeconômicos muito diferentes, mas os dados contrariam a previsão. Em todos países ocorre um ciclo de elevados ingressos de capitais; de valorização cambial; de queda dos prêmios de risco; de crescimento dos preços dos ativos; de expansão do crédito interno; de crescimento das exportações; e de crescimento econômico superior à média da última década. O que conduz ao surpreendente resultado? A resposta está na elevada liquidez internacional e no forte crescimento das exportações e do PIB mundial. O Brasil também tem se beneficiado deste ciclo mundial excepcionalmente favorável. É ele que explica o aparente "mistério" do acelerado crescimento de nossas exportações, que vem ocorrendo mesmo diante da contínua valorização do real, produzindo superávits nas contas correntes que permitiram o alongamento do perfil de vencimentos da dívida pública externa; a redução da dívida externa do setor privado; e o barateamento dos bens de capital importados. É também esta elevada liquidez que ajudou a comprimir os prêmios de risco dos títulos de dívida soberana, barateando o custo dos empréstimos externos do Tesouro e do setor privado, ajudando a reduzir a dolarização de passivos, estreitando um dos canais através dos quais manifesta-se a nossa "vulnerabilidade externa". Mas mesmo diante de todas condições excepcionalmente favoráveis, tivemos em 2005 uma taxa de crescimento do PIB inferior à dos demais países latino-americanos e muito inferior às expectativas do próprio governo e do setor privado. O que explica este frustrante resultado? A primeira razão repousa na pobreza da política fiscal. Ao prometer em seu discurso de posse a realização de "superávits primários suficientemente elevados para garantir a sustentabilidade da dívida pública", o ministro Palocci criticou duramente o governo anterior por gerar superávits primários apenas elevando receitas, diante da sua incapacidade de controlar o crescimento dos gastos. Esta mesma crítica tem que ser dirigida ao governo Lula. Os gastos de custeio continuam crescendo em proporção ao PIB, o mesmo ocorrendo com a receita tributária. Uma conseqüência deste fato é o declínio dos investimentos em infra-estrutura, que se reduzem ainda mais diante da incapacidade do governo de ativar as PPP, dada a relutância em assegurar marco regulatório que elimine os riscos. Mais grave ainda é o que vem ocorrendo com o pagamento de benefícios da Previdência. Embora logo no início do governo Lula o Congresso tenha aprovado emenda constitucional com uma segunda reforma da previdência, ela nunca foi regulamentada e o regime antigo continua em vigência. A desastrosa conseqüência é que o pagamento de benefícios continua crescendo ao mesmo ritmo anterior. Por outro lado, apesar dos superávits primários próximos de 5% do PIB, a relação dívida/PIB não declinou, em parte devido às elevadas taxas reais de juros, mas em parte também à redução muito acelerada da componente dolarizada da dívida pública, que impediu que a relação dívida/PIB encolhesse em alguns pontos de porcentagem, e que foi motivado mais pela tentativa de evitar valorização mais acentuada do real do que de melhorar a composição da dívida. Muito pouco também foi feito para reduzir a proporção de títulos atrelados à Selic, cuja elevada proporção é um fator de fragilidade, elevando a percepção de riscos.

Governo Lula tem uma política fiscal pobre e assumiu uma visão mercantilista de superávit externo

A segunda razão repousa na visão mercantilista de louvar os superávits comerciais, quando o grande benefício do crescimento das exportações é permitir o crescimento acelerado das importações. Em vez de baratear as importações, e assim reduzir o custo do capital, as importações foram encarecidas pela incidência da Cofins, na busca por mais receita para financiar o crescimento dos gastos de custeio. No Brasil, o crescimento da formação bruta de capital fixo requer o crescimento das importações, e mais de 2/3 de nossas importações são de bens de capital e de matérias primas para a indústria. O "choque externo" favorável de 2005 alterou as relações de troca favoravelmente ao país, elevando os preços internacionais das exportações sem encarecer as importações, que ainda se beneficiaram da valorização do real, e apesar disto a formação bruta de capital fixo teve desempenho medíocre - em parte porque a elevação da Cofins funcionou como barreira protecionista descabida em momento tão favorável quanto este. A terceira razão vem da descoordenação da política macroeconômica. Todos se queixam do "excesso de conservadorismo" do BC, e ele em grande parte merece a crítica. Porém, num país onde a eficácia da política monetária já é baixa devido à presença das LFT, criaram-se novos redutores de eficiência, como a expansão acelerada do crédito ao consumo. A crítica não é dirigida ao fato de que o crédito bancário ao setor privado elevou-se, o que necessariamente tem que ocorrer ao longo do processo de crescimento econômico, mas apenas ao fato de que este aumento foi muito rápido e politicamente motivado, num momento em que a política monetária visava a desinflação. A combinação de choques inflacionários com elevada persistência da inflação faz com que sejam freqüentes e longos os períodos de juros reais superiores aos já elevados níveis de equilíbrio, o que reduz a taxa de crescimento econômico. Mais frustrante ainda é que as taxas reais de juros tenham que permanecer elevadas em um período de forte valorização do real, e que com isso acentuem ainda mais aquela valorização, que para ser minimizada dispara uma redução acelerada da componente dolarizada da dívida pública, que impede uma queda mais acelerada da relação dívida/PIB. No limiar de um ano novo, as perspectivas são de continuidade das mesmas condições internacionais favoráveis ocorridas em 2005. É muito provável que o ciclo de elevação das taxas de juros nos Estados Unidos seja mais breve, e que o crescimento econômico mundial em geral, e da China em particular, continuem sustentando os elevados preços internacionais de commodities. Apesar deste clima, contudo, o ano de 2006 inicia-se com um governo enfraquecido pelos escândalos políticos e pelos frustrantes resultados de sua política econômica. O quadro político atual dificulta a racionalidade das decisões econômicas, com o aumento das pressões para a elevação dos gastos públicos visando uma aceleração temporária do crescimento econômico, que é uma característica típica de um "ciclo político". Na ausência de condições objetivas para acelerar o crescimento econômico de forma sustentada, os políticos historicamente sucumbem à tentação de produzir bolhas artificiais de crescimento que culminam em grandes desajustes, que retardam ainda mais a implementação de reformas e a conquista das condições para o crescimento acelerado. É pena que esta seja a antevisão de 2006, principalmente considerando que, contrariamente aos efeitos desfavoráveis da economia mundial entre 1995 e 1999, estejamos diante de mais um ano de condições extremamente favoráveis.