Título: Déficit dos EUA não preocupa, diz Dooley
Autor: Sergio Lamucci
Fonte: Valor Econômico, 03/01/2006, Finanças, p. C8

Entrevista Países asiáticos devem continuar a financiar as contas

Michael Dooley é um dos poucos economistas a não mostrar grande preocupação com o déficit externo americano, atualmente na casa de US$ 800 bilhões por ano. Professor da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, Dooley avalia que países asiáticos como China, Coréia do Sul, Malásia e Taiwan devem continuar a financiar o rombo nas contas dos EUA com o resto do mundo por mais dez anos. Para ele, esses países vão seguir na acumulação de reservas internacionais a um ritmo forte, para manter o câmbio desvalorizado, e usar os recursos para comprar títulos do Tesouro americano. Dooley rechaça as análises de que esse arranjo é insustentável, por avaliar que asiáticos têm grande interesse em mantê-lo de pé. Como a estratégia desses países é crescer com base na expansão robusta das exportações, é fundamental manter o câmbio desvalorizado, de modo que a indústria exportadora absorva a mão-de-obra abundante, afirma Dooley. Para isso, é necessário intervir pesadamente no mercado de câmbio. Os recursos adquiridos, por sua vez, devem continuar a ser direcionados para a compra de títulos americanos, e não de outros países, por um motivo simples, na opinião de Dooley: diversificar reservas dificultaria manter o atrelamento das moedas ao dólar, o que é importante para países que se preocupam em manter o câmbio sempre competitivo. Como a absorção dos trabalhadores da atual periferia de países asiáticos (como China, Coréia do Sul, Malásia e Cingapura) pela indústria pode levar uma década, esse arranjo pode durar pelo menos mais dez anos. As opiniões de Dooley sobre o assunto têm peso: em 2003, ele escreveu um artigo bastante influente, em conjunto com os economistas David Fokerts Landau e Peter Garber, sobre o que batizaram de "sistema de Bretton Woods revisitado". Segundo eles, o arranjo atual da economia global é parecido com o que vigorou entre os anos 40 e o começo dos anos 70. Segundo um texto escrito por Dooley e Garber em meados deste ano, esse novo Bretton Woods, ou Bretton Woods II, tem como características principais : 1. há um grupo de países emergentes - os asiáticos - que administram suas moedas em relação ao dólar, para sustentar um crescimento baseado na expansão das exportações; 2. esses países "exportam" grandes quantidades de capital para países mais ricos, principalmente os Estados Unidos, reciclando suas reservas e, com isso, financiando o déficit americano; 3. os EUA estão no centro do sistema, aceitando grandes desequilíbrios em conta corrente; 4. há um outro grupo de países, desenvolvidos (os europeus) e emergentes (a América Latina) que mantêm taxas de câmbio flutuantes e não controlam capitais, diferentemente do que fazem os asiáticos. Nos últimos anos, vários foram os economistas que alertaram para a insustentabilidade desse sistema, como o professor Nouriel Roubini, da Universidade de Nova York. Para ele, em algum momento os países asiáticos devem reduzir o ritmo de compra de títulos americanos e partir para diversificação de suas reservas em outras moedas, para evitar a concentração excessiva de seus recursos em ativos denominados em dólar. Dooley vê com ceticismo esses temores: além de avaliar que isso dificultaria o atrelamento da taxa de câmbio ao dólar, o que é importante para quem deseja mantê-la num nível competitivo, ele diz que não há números que sustentem que os bancos centrais mudaram a composição de suas reservas. Dooley claramente vê com bons olhos a estratégia dos asiáticos. E ela seria adaptável pelo Brasil, como querem tantos economistas por aqui? A resposta de Dooley é negativa: segundo ele, "um país como o Brasil, com mercado de capitais aberto, tem dificuldades para resistir à valorização do câmbio. E controle de capitais não funcionariam no Brasil. Uma vez que os mercados são abertos, não é possível fechá-los de novo. Controles de capitais são muito difíceis de implementar quando os residentes acreditam ter o direito de administrar seus assuntos financeiros sem a interferência do governo". Para Dooley, o que cabe ao Brasil fazer é reduzir a dívida externa, o que pode ter bons resultados e é o que o país tem feito, como mostra a recente decisão de quitar antecipadamente a dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que venceria em 2006 e 2007.

Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista com Dooley, que também é consultor-sênior do Deutsche Bank.

Valor: Alguns economistas afirmam que o novo sistema de Bretton Woods é insustentável e deve entrar em colapso no curto prazo, devido à magnitude dos desequilíbrios macroeconômicos dos EUA. Por que o sr. tem uma visão diferente? Michael Dooley: A questão é que é do interesse dos países asiáticos continuar a financiar o déficit americano, para manter o câmbio desvalorizado e empregar um grande número de trabalhadores na indústria [gerando crescimento a partir da expansão das exportações]. Esse incentivo vai durar um longo período, porque vai levar muito tempo para absorver o número inicial de trabalhadores desempregados no campo.

Valor: Quanto tempo pode durar o Bretton Woods II? Dooley: A atual periferia da Ásia [como China, Coréia do Sul, Cingapura e Malásia] vai sustentar o sistema por mais dez anos. Mas há outros países que podem assumir o lugar deles. Países que estão hoje na periferia vão mudar de categoria, mas podem ser substituídos por outros. A questão é que é muito difícil prever como e quando isso vai ocorrer.

Valor: O sr. acredita que os países asiáticos vão diversificar suas reservas, aplicando-as em outras moedas? Alguns BCs já manifestaram a intenção de diversificá-las. Dooley: Não há números que sustentem a afirmação de que qualquer banco central mudou a composição de suas reservas. Nós não acreditamos que os BCs vão agir desse modo porque seria mais difícil manter o atrelamento de suas moedas ao dólar.

Valor: Os países asiáticos seguem um modelo baseado no crescimento das exportações. Alguns analistas sugerem que eles deviam passar a focar o consumo doméstico. É o momento de esses países mudarem suas estratégias? Dooley: O que esses países devem fazer e o que eles podem fazer são coisas diferentes. Se eles tivessem um mercado doméstico de crédito eficiente, faria sentido focar no investimento e na produção para o mercado interno. Mas o sistema financeiro doméstico é muito ineficiente, e nós não acreditamos que isso vai mudar em breve.

Valor: A China valorizou o câmbio em julho. Qual o real significado da mudança e como isso vai afetar o novo sistema de Bretton Woods? Dooley: Uma pequena valorização do câmbio em termos reais faz parte integral do novo sistema de Bretton Woods. O objetivo é, de modo lento, acabar por aumentar os salários para os níveis globais. A pequena valorização significa que isso pode ser atingido sem inflação.

Valor: Uma política fiscal mais apertada é sugerida como uma medida importante para resolver os desequilíbrios nos EUA, assim como uma desvalorização adicional do dólar. O que o sr. acha dessas sugestões? Dooley: Uma redução do déficit fiscal americano pode ser uma boa idéia por outros motivos, mas não é o principal causa para o déficit em conta corrente. Os EUA não estão atraindo poupança externa oferecendo juros elevados. O país está aceitando poupança externa a juros baixos.

Valor: O BC brasileiro não evitou uma valorização significativa do câmbio nos últimos meses.. O Brasil deveria seguir o modelo asiático, baseado no crescimento das exportações e no câmbio desvalorizado ou ele não pode ser adaptado para o Brasil? Dooley: Um país como o Brasil, com mercado de capitais aberto, tem dificuldades para resistir à valorização do câmbio. E controle de capitais não funcionariam no Brasil. Uma vez que os mercados são abertos, não é possível fechá-los de novo. Mas o governo pode e deve seguir o exemplo asiático de reduzir a dívida externa do governo. Isso encorajaria fluxos de capitais entre agentes privados para o Brasil e a partir do Brasil, o que beneficiaria o país.

Valor: Por que controles de capitais não funcionariam no Brasil? Dooley: Controles de capitais são muito difíceis de implementar quando os residentes acreditam ter o direito de administrar seus assuntos financeiros sem a interferência do governo. É uma questão de economia política. Leis são difíceis de ser implementadas quando as pessoas não acham que elas são justas. Controle de capitais são difíceis de aplicar em qualquer ambiente, porque há muitas maneiras de evitá-los. O Brasil não vai conseguir controlar o câmbio diretamente por meio de intervenções ou controles, mas uma boa política de administração da dívida pública e uma regulação cuidadosa de instituições financeiras podem produzir bons resultados.