Título: Luiz Inácio "Chávez" da Silva
Autor: Cristiano Romero
Fonte: Valor Econômico, 04/01/2006, Brasil, p. A2

Quando em 2002, durante a corrida eleitoral, Mary O'Grady, colunista do "Wall Street Journal", escreveu que Luiz Inácio Lula da Silva era a cara de Hugo Chávez, a reação nos Estados Unidos e no Brasil foi de espanto. O'Grady é uma analista ultraconservadora. Nas páginas do "Journal", o maior jornal americano, destila veneno, com enorme grau de desinformação, sobre o que acontece abaixo da linha do Equador, especialmente, na América Latina. Suas palavras tiveram enorme repercussão e causaram mal-estar. Naquele ano, perto de concluir a fase de preparação para assumir a embaixada dos EUA em Brasília, Donna Hrinak, num encontro fechado com executivos de empresas americanas em Nova York, procurou desfazer a impressão difundida por O'Grady. Questionada por um executivo sobre a semelhança entre Lula e Chávez, Hrinak, que conhece muito bem o governante venezuelano, pois foi embaixadora em Caracas antes de se mudar para o Brasil, afirmou categoricamente: "Lula não é Chávez". Pouco tempo antes da declaração de Hrinak, o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), de oposição a Lula, sofreu cerrada perseguição de executivos estrangeiros no Fórum de Davos, realizado em Nova York naquele ano. Eles queriam saber de Lula e do PT. "O Lula do presente é uma pessoa completamente diferente do Lula do passado. O PT também. O programa do PT é muito similar ao nosso", declarou Tasso dias depois, durante palestra na Câmara de Comércio Brasil-EUA. O'Grady talvez até tenha se surpreendido com os primeiros meses de Lula no poder. Afinal, ela previu o caos. O que ela possivelmente não imaginava é que, três anos depois de instalado no poder, Lula está mesmo ficando a cara de Hugo Chávez. O fato é que duas das características comuns aos dois líderes - o populismo e o autoritarismo - não foram antecipadas pela opinião pública como traços marcantes do caráter do líder brasileiro. Mais uma vez, Lula enganou (quase) todo o mundo. Diz-se que Lula odeia a imprensa. Não é verdade. A imprensa favorável ele adora. Lula, assim como Chávez, odeia mesmo é a liberdade de expressão, um pilar da democracia que o Brasil tenta construir a duras penas há exatos 20 anos. Em três anos de mandato, concedeu uma única entrevista coletiva. Nela, estabeleceu que não haveria direito a réplicas. Como responde o que quer, a entrevista se transformou num maçante monólogo. Os assessores do presidente alegam que, antes da primeira entrevista, em abril, antes da crise que assola o governo há oito meses, Lula recebeu grupos de jornalistas convidados para conversas no Palácio do Planalto. Nesses encontros, ele proibiu o uso de gravadores. Num outro episódio, também com repórteres convidados na casa de uma jornalista, além do gravador, foi vetado o expediente da anotação. O presidente gosta de dar entrevistas a rádios e a redes de televisão. A razão é simples: nesses veículos, ele atinge o maior número possível de eleitores. Como ignora o teor das perguntas para dizer o que quer, consegue ser ouvido e visto por milhões de pessoas, transmitindo-lhes a imagem moldada por seu carisma. Nem sempre dá certo. Na noite de domingo, no "Fantástico", Pedro Bial apertou Lula, mas ele usou do velho expediente de fugir dos questionamentos.

Os dois líderes têm traços populistas

Lula adora confrontar, mas odeia ser confrontado. Tem enorme dificuldade de convívio com a diferença. O caso Larry Rohter, em que decidiu expulsar do país o correspondente americano que supostamente escreveu infâmias a seu respeito, revelou de forma definitiva o viés autoritário. Contra a opinião sensata de um ou dois assessores e com o apoio oportunista de outros tantos, soltou seus demônios. No rastro daquele caso, vieram tentativas de controlar a imprensa (via criação do Conselho Federal de Jornalismo) e a produção cultural (pela instituição da malsinada Ancinav). Essas iniciativas, que a turma de Lula jura não ter sido urdida nos porões do Planalto, portanto, não teriam tido uma inspiração fascista única, não sucederam porque a sociedade não permitiu. Lula se sente acima das instituições. Demonstrou isso quando, no auge da crise, fez ameaças veladas ao dizer que, apesar das denúncias, ele tinha o povo ao seu lado. Ameaçou também quando disse que somente ele e o PT são capazes de segurar a sanha revolucionária de movimentos como o MST. Há algo mais chavista do que isso? Na seara do populismo, é verdade o governo Lula surpreendeu ao optar pelo caminho da responsabilidade econômica. Mas, aí, revela-se um outro traço da personalidade do presidente: ele é um mestre da sobrevivência. Entre adotar o que defendeu durante duas décadas de pregação inconseqüente e ver seu mandato ruir em questão de dias ou mesmo horas, optou por trair seus companheiros e ficar com os mercados. Não por convicção. Aflito com a possibilidade de perder a eleição em 2006, namorou recentemente com o populismo. Advertido por empresários e banqueiros, deu para trás. Ademais, vários dos programas do governo são pura política de aliciamento das classes sociais de menor poder aquisitivo. O Bolsa-Família, sem que se formem novas gerações por meio da educação, é um programa de esmolas. Nesse sentido, Lula é devoto de Joaquim Roriz, que, em Brasília, por meio da distribuição de terras públicas a miseráveis durante quatro mandatos, montou um dos maiores currais eleitorais do país e tornou-se eleitoralmente imbatível. Lula, que numa reunião ministerial invejou a máquina de propaganda do governador de Brasília, é um Roriz de proporções nacionais. Às críticas, Lula costuma reagir com acusações. "É preconceito porque sou nordestino e operário. É golpe da direita", diz. Trata-se de puro diversionismo. É a primeira vez na História do país, como lembra o ex-ministro Paulo Paiva em artigo na "Berkeley Review of Latin American Studies", que uma crise emergiu de dentro da coalizão do próprio governo e não de revelações feitas pela oposição. Foram os aliados de Lula os denunciantes das malfeitorias do governo e do PT. O PT atraiu para a sua coalizão partidos que ideologicamente nada têm a ver com o partido. Foram justamente os parlamentares dessas siglas os mais leais ao governo nas votações do Congresso. Por que terá sido? Por convicção ou por fidelidade pecuniária? Mas, para Lula, é a oposição, a imprensa burguesa e os empresários que golpeiam os hábitos democráticos.