Título: A política fiscal em debate
Autor: Francisco Luiz C. Lopreato
Fonte: Valor Econômico, 04/01/2006, Opinião, p. A8

Discussão deve ter olhar crítico sobre a lógica do regime de política econômica

A discussão em torno da política fiscal ganhou novos contornos com o embate no interior do governo e o resultado negativo do PIB no 3º trimestre do ano. Logo se levantaram vozes contra e a favor. Mas nem sempre fica claro se o debate envolve apenas a gestão da política fiscal ou também se questiona a lógica do regime de política econômica. A partir da crise cambial de 1999, o país adotou como regime de política econômica o câmbio flutuante, a política de metas de inflação e a austeridade fiscal. A estratégia da política fiscal passou a se basear na obrigatoriedade de reduzir a relação dívida/PIB como meio de garantir a solvência das contas públicas. O indicador de sustentabilidade da dívida ganhou o status de sinalizador da saúde da economia e de fiador da expectativa de rentabilidade das aplicações financeiras privadas. A aceitação desse regime de política econômica e o uso da idéia de sustentabilidade da dívida como elemento central da política fiscal teve implicações relevantes. O governo comprometeu-se a gerar o superávit primário necessário à manutenção da trajetória de queda da relação dívida/PIB, independentemente dos valores do câmbio, juros e PIB. A política fiscal recebeu, então, o papel de âncora da estabilidade macroeconômica e das políticas monetária e cambial. Essa tarefa deixou a política fiscal com pouco ou nenhum espaço para ações de manipulação da demanda agregada, diante da atribuição que lhe coube de dar consistência intertemporal às propostas adotadas e de garantir a credibilidade da política econômica. A política do governo Lula mostrou-se consistente com esses princípios teóricos. O compromisso com a âncora fiscal manteve-se como peça basilar da estratégia oficial de assegurar a estabilidade e consolidar a reputação da política econômica. A aceitação dessa lógica do regime de política econômica deixou o governo refém da obrigação de produzir novo aumento do superávit primário quando o Banco Central decidiu iniciar a elevação da taxa de juros em setembro de 2004. A execução da política orçamentária teria de se comprometer com a receita tributária e a contenção dos gastos públicos capazes de gerar o superávit primário exigido pelo comportamento da relação dívida/PIB. Tal procedimento acirrou o potencial de conflito entre os membros do próprio governo e da base de apoio partidária, contrários aos cortes de investimentos e dos gastos ministeriais. Simultaneamente, levantou críticas de outros setores da sociedade que defenderam cortes adicionais nos gastos correntes, a desvinculação das receitas e a definição de regras mais duras, visando dar fim ao déficit nominal. Nesse confronto, a questão em jogo envolve não apenas a gestão das contas públicas, mas a própria lógica do regime de política econômica e da política fiscal. Os críticos convencionais investem diretamente contra a gestão da política fiscal. Os que defendem a posição alternativa querem debater o regime de política econômica, envolvendo a articulação entre as políticas fiscal, monetária e cambial. Entre os que defendem a posição convencional, o que mereceu maior destaque foi a proposta do déficit nominal zero, de autoria de Delfim Netto. A idéia do autor partiu de dois pressupostos básicos. Primeiro, da visão teórica de que o ajuste fiscal não terá efeito negativo no valor total dos gastos da economia. Ao contrário, criaria uma expectativa favorável sobre o comportamento futuro da economia e isso levaria os agentes privados a ampliarem as despesas, compensando a redução dos gastos públicos. Segundo, da tese de que o valor da taxa de juros é resultado da fragilidade da política fiscal e do montante da dívida pública. Assim, o déficit nominal zero provocaria a queda dos juros e da carga tributária, assegurando a retomada dos investimentos.

Patamar de despesas financeiras impede redução significativa da dívida pública e retomada do desenvolvimento

O impasse atual estaria, então, na incapacidade da gestão fiscal alcançar o ajuste capaz de desencadear as forças propulsoras do crescimento econômico. A tarefa exigida seria a de aprofundar o ajuste fiscal e esperar que a queda da taxa de juros e a mudança de expectativa dos agentes privados levassem à retomada da expansão. Essa idéia está longe de ser consensual. É preciso, inicialmente, chamar a atenção para o fato de que os pressupostos da proposta de déficit nominal zero são teoricamente e empiricamente discutíveis e só se verificam em condições particulares (uma boa visão dessas questões aparece em: Briotti, M.G. "Economic Reactions to Public Finance Consolidation: A survey of the literature". European Central Bank. Occasional Paper Series nº 38, October 2005). Além disso, não é razoável acreditar que o peso e as condições da dívida pública sejam os responsáveis diretos pelo atual patamar dos juros no Brasil. Isto implicaria em aceitar a existência de um risco previsível de default da dívida pública, o que não parece correto diante do quadro macroeconômico e da administração da dívida pública. A visão alternativa é de outra natureza e defende que o problema não se prende apenas à gestão da política fiscal. Não há dúvida de que a austeridade fiscal é necessária no momento atual da economia brasileira e de que também se pode avançar no trato da eficiência do gasto público. Entretanto, o debate deve envolver a política fiscal e a lógica do regime de política econômica, com ênfase na condução da política monetária e nos desdobramentos que ela acarreta sobre as outras áreas. O uso do regime de metas de inflação no Brasil, desconsiderando os choques de oferta e a importância dos preços administrados na variação dos preços, acabou levando à fixação de taxa de juros real elevada, à valorização do câmbio e ao comprometimento da política fiscal. A dura política monetária do Banco Central promoveu a aceleração do crescimento da dívida pública e dos gastos com juros, que atingiram R$ 155,4 bilhões (sic) ou 8,1% do PIB, nos últimos 12 meses terminados em outubro de 2005. Com esse patamar de despesas financeiras não há esforço fiscal capaz de reduzir significativamente a dívida pública nem de enfrentar os problemas criados com o baixo nível de investimentos e a elevada carga tributária. Já passou da hora de rever o regime de política econômica e de retomar a discussão sobre a trajetória do desenvolvimento.