Título: Liquidez extravasa e põe BC em xeque
Autor: Luiz Sérgio Guimarães
Fonte: Valor Econômico, 04/01/2006, Finanças, p. C2

O mercado de câmbio perdeu o medo de que o Banco Central, após a liberação das posições compradas em dólar mantidas pelos bancos, viesse a restringir o carregamento de posições vendidas. Um banco pode hoje "comprar" ou "vender" dólar até o limite do seu patrimônio. E já que as instituições sustentam dívidas em dólar registradas no BC superiores a US$ 3 bilhões - o montante exato referente a dezembro será divulgado hoje -, uma medida efetiva contra a desvalorização do dólar seria estabelecer punições administrativas a essas posições. Ao contrário do cancelamento das limitações às compras, cujo efeito sobre o preço do dólar foi zero, a imposição de restrições à venda levantaria de imediato a cotação. Os executivos não sabem bem por qual razão, mas o fato é que o câmbio abandonou o receio de que tal medida viesse a ser adotada pelo BC. E não teve como ele segurar a queda do dólar ontem. As suas duas costumeiras intervenções não evitaram que a moeda americana fechasse em baixa de 0,38%, cotada a R$ 2,331. Em vão, comprou dólares nos mercados futuro e à vista. Ao meio-dia realizou o tradicional leilão de swaps cambiais invertidos. Vendeu 7,4 mil dos 8,8 mil contratos oferecidos, e ampliou em US$ 350,5 milhões sua posição credora em dólar no mercado futuro. Já não existe mais a justificativa oficial de que estava vendendo esses swaps para reduzir sua exposição cambial. Na verdade, o BC já não tem dívida em dólar. Desde 17 de novembro, quando retomou os leilões de swaps, ele já vendeu 223,1 mil contratos, tornando-se credor de US$ 12,23 bilhões e devedor em Selic na mesma proporção. Quem sai ganhando? E, à tarde, o BC comprou dólares à vista por R$ 2,334. Antes desse leilão, o dólar caia 0,17% e, depois dele, a desvalorização intensificou-se para 0,38%. Providências administrativas contra a queda do dólar parecem ser racionalmente justificáveis diante do fato de que a estratégia intervencionista do BC é muito cara, além de pouco eficaz. Sobretudo se um tsunami de dólares vier a varrer o Brasil. Essa hipótese, presente ontem no mercado internacional, exigiria a colocação de volumes maiores de swaps invertidos e compra mais expressiva de moeda no mercado à vista. Mas o dilema é que a imposição de punições ao carregamento de posições vendidas - ou pressões sobre a BM&F para que aumente a chamada de margem sobre os contratos futuros de dólar - afronta os princípios neoliberais tão religiosamente reverenciados pela atual gestão do BC. Mas pode não haver outra alternativa. Mesmo antes da divulgação da ata da última reunião de política monetária do Federal Reserve (Fed), os investidores estrangeiros vazaram liquidez por todos os mercados. Bastaram a divulgação de um índice fraco de atividade nos EUA - o índice relativo a dezembro do Instituto de Gestão de Fornecimento (ISM, na sigla em inglês) sobre a atividade manufatureira caiu a 54,2, aquém dos 57,5 previstos pelos analistas internacionais e do número de novembro, de 58,1 - e a expectativa, depois confirmada, de que o Fed iria sinalizar a interrupção, em breve, do aperto monetário para os mercados buscarem alternativas aos juros americanos. As taxas dos treasuries de 10 anos tombaram de 4,40% para 4,35%. A Bovespa subiu 3,08%, a 34.540 pontos, recorde histórico. E o risco-país recuou 1,97%, para 299 pontos-base, nível mais baixo da série histórica do JP Morgan, iniciada em 1994.

Bovespa e risco-país batem recordes

O transbordamento de liquidez visto ontem nos mercados emergentes pode ter sido apenas o início de um movimento mais vigoroso, se for consolidada a percepção de que, após mais um aumento de juro de 0,25 ponto na reunião de 31 de janeiro, o Fed irá estabilizar a taxa básica em 4,50% por longo tempo. Nesse caso, será muito difícil ao BC segurar a queda do dólar. Prevê-se uma expansão no volume de Non-Deliverable Forward (NDF), contratos de balcão firmados no mercado externo por meio dos quais fundos agressivos ficam vendidos em dólar e comprados em reais, com o objetivo de auferir a Selic. Os economistas conservadores se recusam a acreditar que são as operações com derivativos, sem ingresso de moeda física no país, as principais responsáveis pela desvalorização do dólar. Para eles, são os dólares oriundos do superávit comercial os culpados pela apreciação cambial. Consideram que o juro elevadíssimo exerce a função involuntária de atração de capitais externos ao reduzir a atividade econômica interna, impelindo as empresas a correr atrás de rentabilidade no comércio exterior, e ao tornar lucrativa a operação de ACC pelos exportadores. Mas não conseguem entender como uma operação com derivativo de câmbio é capaz de derrubar o preço do dólar à vista. Na verdade, não há nenhum mistério nisso. Um hedge fund assume lá fora junto a uma contraparte (geralmente um megabanco global) posição vendida em dólar e comprada em real. O banco que serve de contraparte do NDF absorve portanto a posição inversa à do hedge fund. Fica comprado em dólar e vendido em real. Para se livrar desse incômodo, ele vem à BM&F e inverte a posição. Se o preço do dólar cai no futuro, a cotação precisa cair à vista, mesmo que não haja entrada física de capital. Se não cair, desencadeia a arbitragem simples de compra de dólar no futuro e venda à vista. Aí ele cai. E são US$ 70 bilhões em NDF socando o dólar para baixo. Como sair da sinuca? Basta derrubar a Selic.