Título: "Jogo de xadrez" vai continuar esta semana
Autor: Assis Moreira
Fonte: Valor Econômico, 12/12/2005, Brasil, p. A4

Relações Externas Meses pré-evento foram intensos em negociações, propostas, cobranças e acusações

Resistência em fazer concessões, desconfiança mútua e frustração marcaram dezenas de horas de reuniões entre ministros do Brasil, Estados Unidos, União Européia, Índia e Austrália, nas semanas pré-Hong Kong, na tentativa de superar o impasse na negociação agrícola na Organização Mundial do Comércio (OMC). "Estamos à beira de um desastre", resumiu o comissário europeu Peter Mandelson, numa das últimas reuniões. Os encontros ocorreram em Genebra, Zurique, Londres, Paris, Roma, além de freqüentes telefonemas e até videoconferência, desde setembro. O que parece um exaustivo jogo de xadrez deve se repetir a partir de amanhã na conferência ministerial de Hong Kong. O Valor apurou como as pressões e as alianças foram mudando com as ofertas, sem conduzir a entendimento. No segundo semestre deste ano, Brasil e UE faziam a dobradinha, não cessando de repetir que a "bola estava com os americanos" para a negociação avançar. Então, em 10 de outubro, Washington propôs cortes nos subsídios domésticos, em reunião com ministros de 15 países no elegante Hotel Hayat, Zurique. O maior impacto foi redução de 60% na caixa amarela (os que mais distorcem), indo além dos 55% exigidos pelos europeus. Rob Portman, o principal negociador comercial americano, procurou logo capitalizar sua oferta. Numa bilateral antes da reunião, cobrou "aplausos" do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. O brasileiro disse que o movimento era "importante, mas insuficiente". E que não queria se confrontar com uma situação que legalizasse subsídios condenados pela OMC na disputa do algodão. De seu lado, Mandelson reagiu anunciando que a Europa iria oferecer corte não mais de 60%, mas sim de 70% na caixa amarela. A comissária agrícola Mariann Fischer Boel chegou a dizer, em reunião, que a UE poderia cortar até 80%. A proposta americana foi uma "surpresa" em Genebra. Eles esperavam no máximo corte de 55% na caixa amarela. Acham que a oferta pode levar a uma reforma "significativa" de sua política agrícola. Como há enorme resistência política dos produtores de lácteos, açúcar e amendoim, a expectativa é que os mais afetados serão programas com forte impacto exportador em produtos como algodão, arroz, milho, soja e trigo. Washington tentará criar novo programa de sustentação de renda pela caixa verde (subsídios autorizados). Ainda em Zurique, Amorim e Mariann Fischer Boel, travaram um debate "difícil" sobre o número de produtos sensíveis da UE. Mandelson precisou intervir para amenizar a posição de sua colega, prometendo que em todos os produtos sensíveis haveria expansão "significativa" de quotas tarifárias. O diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, advertiu mais tarde que essa questão não deveria ser cortina de fumaça para "envenenar" e "descarrilhar" a rodada. No dia seguinte, o G-4 voltou a se reunir em Genebra. Mike Johannes, secretário de agricultura dos EUA, insistiu que Washington tinha ido tão longe em sua oferta que era acusado de ter "vendido os agricultores norte-americanos". Exemplificou que vários programas do país não se enquadrariam mais numa nova política agrícola após os cortes propostos. Mariann Boel, da UE, pediu para os americanos cortarem mais os subsidios. Foi a vez de o ministro australiano Mark Vaile cobrar da UE cortes profundos nas tarifas. Já Kamal Nath, da India, manteve-se contra abertura agrícola. Amorim interveio. O brasileiro disse que os problemas indianos seriam resolvidos pelo tratamento especial e diferenciado a países em desenvolvimento e por flexibilidade específica no futuro acordo agrícola. Os EUA saíram do isolamento político com sua oferta - e a pressão transferiu-se para o G-20 e a UE. Foi a hora da verdade para o G-20, já que cortar tarifa é um tema sensível diante de interesses diferentes na agricultura. A Índia fica na defensiva sobretudo por causa da eleição no ano que vem. O atual governo não quer dar a impressão de "entregar" os interesses dos agricultores pobres. No grupo, Kamal Nath manteve sua postura "extremamente defensiva" e Amorim ameaçou abandonar a coordenação do G-20. Ele disse a Kamal que não dava só para negociar defensivamente. O G-20 "passou no teste" propondo corte médio de 54% nas tarifas dos ricos - sugestão feita por Lamy dias antes. Os países em desenvolvimento, como a Índia, cortariam 36%. Os EUA e o Brasil aumentaram então as cobranças sobre a UE. Já a Suíça, do G-10, grupo mais protecionista na agricultura, rebelou-se contra a idéia de se limitar a tarifa agrícola máxima nos países ricos a 150%, algo que até a UE aceitara. O embaixador suíço em Brasília, o habilidoso Rudolf Baerfuss, procurou o Itamaraty para advertir que seu país poderia "até vetar a negociação" se seus interesses não fossem minimamente atendidos. Outra reunião crucial ocorreu em outubro na protegida missão diplomática americana em Genebra. Na defensiva, os europeus reagiram atacando. Cobraram dos americanos eliminação de subsídios embutidos nos créditos à exportação e ajuda alimentar. Mandelson disse que queria negociar também o acordo antidumping, mas não muito. E com Mariann Boel acusou o G-20 de propor um corte agrícola muito baixa para países em desenvolvimento. Amorim ironizou, indagando se seria factível imaginar que a rodada fracassaria porque esses países não tinham se movido em agricultura, justo eles que querem a reforma agrícola mundial. Lamy fez seu alerta habitual: o tempo "urgia". Portman encerrou o debate e convidou os ministros para um jantar. Foi quando Mandelson mapeou francamente suas alternativas para prosseguir a negociação: primeiro, reduzir o nível de ambição da rodada; segundo, correr o risco de fazer oferta nova, esperando que fosse aceita pelos 25 países membros; terceiro, pedir novo mandato negociador que implicasse entender a reforma da Política Agrícola Comum (PAC). Ele descartou de imediato a terceira opção, dizendo que existia uma minoria de bloqueio, referindo-se a França, Espanha, Irlanda, Polônia e Hungria. Já Amorim rejeitou reduzir a ambição agrícola. Disse que ficaria muito difícil ter apoio interno para prosseguir a negociação. Para Portman, os europeus não podiam fazer ajuste "cosmético ou limitado" da oferta anterior. E que a França teria que assumir o ônus de um eventual fracasso de Hong Kong. Mandelson acabou prometendo nova oferta, mas alertou que não conviria esperar muito dela. Lamy terminou a sobremesa especulando o que fazer se a oferta européia não fosse aceita pelos outros: convocar nova ministerial para abril-maio, ou "reprogramar" Hong Kong, ou seja, cancelar a ministerial. Antes de apresentar a nova oferta, Mandelson telefonou aos principais ministros para avisar que não "contemplaria totalmente" as expectativas, mas seria uma "oferta final". O comissário salientou a importância da oferta não ser descartada por Brasil, EUA, Austrália e Índia, alegando que isso deixaria a Comissão Européia "desacreditada" junto aos Estados-membros. No dia 28 de outubro, a UE anunciou que aceitava corte de 46% nas tarifas agrícolas na média, acompanhada de exigências e exceções. Portman telefonou a Amorim dizendo-se "decepcionado". O brasileiro queria saber se era uma oferta tipo "pegar ou largar". Lamy interveio dizendo que não. Seguiu-se uma videoconferência de 90 ministros entre membros do G-4, Lamy e Crawford Falconer, o mediador da negociação agrícola. Começou com todos reconhecendo a difícil situação política na qual Mandelson teve que preparar a oferta. Depois choveram os ataques. Brasil e Índia acusaram a UE de buscar um tratamento especial "às avessas", de pobre para rico e que ameaçava transformar Doha em Rodada do Subdesenvolvimento. Até a Austrália, com interesse na abertura industrial, reclamou que a UE foi longe demais nessa área e muito pouco em agricultura. Brasil, Austrália e EUA contestaram as cifras européias, dizendo que o corte era só de 39%. Lamy deu razão aos dois lados, dependendo da metodologia. Portman reclamou que não poderia dizer ao setor agrícola americano que a oferta da UE traria vantagem para eles poderem exportar mais. Alvejou sobretudo flexibilidades pedidas pela UE, que poderiam anular boa parte do corte das tarifas. Mandelson insistiu que sua oferta era ampla, foi mais "realista que o próprio rei" e todos deveriam entender que se tratava de "fim do jogo". Disse que não seria "politicamente sábio" retornar ao Conselho Europeu para pedir um novo mandato para ampliar a oferta. E completou: sem concessão dos outros, seria difícil mantê-la. Lamy qualificou a oferta européia de "séria e a ser examinada". E fez comentários que para alguns lembraram seus tempos de comissário de Bruxelas. Quando disse que os cortes em agricultura deveriam ser comparados com redução nas tarifas aplicadas em produtos industriais, Brasil e Índia reagiram dizendo que nem pensar. Visivelmente contrariado, Mandelson antes de se despedir avaliou que a negociação agrícola estava "á beira de um desastre". Mas advertiu que a EU não se moveria. Essa posição foi reiterada desde então. Outras reunioes se sucederam. O Japão pediu ao G-4 para participar e passou a ser convidado. Em Londres, enquanto Amorim acenava com corte de 50% nas tarifas industriais, Mandelson martelava que os Estados-membros da UE estavam "decepcionados e desencantados" pela paralisação nas negociações industriais e de serviços. No dia seguinte, em Genebra, ambos protagonizaram acusações mútuas de bloquear a rodada. A desconfiança é geral. O próprio Lamy irritou-se e achou que os europeus não tinham confiança em seu trabalho, quando bloquearam inclusão das propostas agrícolas na declaração ministerial de Hong Kong. É nesse ambiente que os mesmos ministros vão tentar, em Hong Kong, empurrar a rodada para menos perto do abismo.