Título: Regulação tupiniquim é contra os mercados
Autor: Gustavo Loyola
Fonte: Valor Econômico, 12/12/2005, Opinião, p. A11

Apesar dos acidentes de percurso e das hesitações, é possível observar que, seguindo uma tendência mundial, também no Brasil o Estado-empresário está progressivamente dando lugar ao Estado-regulador. Enquanto que o primeiro se preocupava em atuar diretamente nos mercados, substituindo ou competindo com os agentes econômicos privados, o segundo preocupa-se com o provimento de condições para que a alocação de recursos através dos mercados ocorra da maneira socialmente mais eficiente. Num caso o Estado é meramente um dos jogadores em campo, no outro atua como árbitro, definindo e fazendo valer regras do jogo socialmente eficientes. Ocorre que essa crescente intervenção regulatória do poder público tem freqüentemente contribuído para piorar o funcionamento dos mercados, reduzindo sua eficiência em vez de aumentá-la. Há uma pletora de causas para essa patologia do processo regulatório no Brasil. Em tese, a regulação governamental somente seria justificada para a correção das falhas de mercado, como externalidades negativas, assimetria informacional etc. Ocorre que há razões menos nobres que freqüentemente estão associadas com a regulação, entre elas a extração de benefícios pecuniários para o governo, a busca do aumento da popularidade dos políticos eleitos e a obtenção de benefícios aos próprios entes regulados. Por outro lado, a regulação governamental deve ter algumas qualidades básicas: ser eficiente para atingir seus objetivos com o menor custo; imparcial para não criar vantagens competitivas artificiais para alguns participantes do mercado em detrimento dos outros; e flexível para acompanhar o natural progresso do mercado regulado. Embora problemas regulatórios não sejam uma peculiaridade brasileira, aqui as distorções tendem a ser mais graves do que nos países desenvolvidos. Como pano de fundo, no caso do Brasil, cabe menção à raiz histórica do patrimonialismo herdado da nossa colonização lusa. À luz dessa herança, a regulação deixa de ser tratada como impessoal e passa a ser vista como um favor pessoal concedido a certos indivíduos ou grupos. Com isso, as normas e regulamentos tornam-se instrumentos casuísticos para atender a interesses privados. Na mesma vertente, as agências reguladoras têm seus cargos de direção objeto de loteamento político, anulando a independência técnica indispensável a essas instituições.

A crescente intervenção regulatória do poder público tem contribuído para piorar o funcionamento dos mercados, reduzindo a sua eficiência

Iniciativas de duvidosa racionalidade econômica como a do "telefone social" são exemplo do uso equivocado da regulação como maneira de aumentar a popularidade do governo entre os eleitores. Não importa, no caso, o custo adicional que tal iniciativa acarretará para outros usuários dos serviços de telecomunicações, nem o resultante aumento da ineficiência desse mercado. Pouco importa também que a Anatel não apóie a medida. Basta apenas que a iniciativa tenha um potencial apelo popular. Agravando a situação, parcela relevante dos políticos e da burocracia governamental ainda possui uma mentalidade enviesada contra o mercado, do que resultou uma conversão forçada à privatização e à perda gradual das funções de empresário pelo Estado. O governo Lula particularmente é vítima desse caráter hamletiano, quando se trata da delimitação das funções do Estado. Muitas vezes, o uso do aparato regulatório revela o desejo oculto da reestatização, como ocorreu na estruturação do chamado "novo" modelo do setor elétrico, cuja funcionalidade é muito mais apropriada a um mercado dominado oligopolisticamente por empresas geradoras estatais do que a mercado concorrencial entre empresas privadas. Por outro lado, o uso oportunista do Judiciário por grupos de interesse, incentivado por certas dificuldades inerentes ao nosso processo judicial, adiciona mais ineficiência ainda à regulação no país. Sob o manto da defesa do consumidor, por exemplo, o Judiciário tem acatado reclamações de associações cujo resultado, a médio prazo, será o encarecimento e a redução da oferta de serviços públicos regulados. É quase regra nas decisões judiciais a preocupação dos magistrados apenas com o caso específico sob exame, sendo ignoradas as repercussões negativas da sentença sobre os produtores e consumidores, potenciais ou efetivos, de determinado tipo de bem ou serviço. Essa atomização das decisões judiciais leva à crescente ineficiência dos mercados, distorcendo os objetivos típicos da regulação governamental, que deixa de atender aos critérios de eficiência, imparcialidade e flexibilidade. Um mercado-símbolo das distorções regulatórias no Brasil é o da saúde suplementar. Como resultado da má regulação, esse setor vem se encolhendo nos últimos anos em termos de clientela. Para compensar as dificuldades que os governos têm para assegurar o cumprimento do preceito constitucional de que "a saúde é direito de todos e dever do Estado", a regulação tem sido orientada para estender a cobertura dos planos sem que se tenha a correta perspectiva dos custos derivados dessa orientação. Em conseqüência, a saúde complementar tornou-se inacessível a uma parcela expressiva da população não coberta por planos coletivos, além de ter se elevado o risco financeiro a que estão sujeitas as operadoras do setor. Em suma, os benefícios da evolução institucional representada pelo enterro da figura do Estado-empresário e sua substituição pelo Estado-regulador não têm sido colhidos plenamente no Brasil em razão do persistente mau uso dos instrumentos regulatórios. Isso significa que, entre os desafios das reformas institucionais, continua presente a necessidade de mudança radical do espírito da regulação econômica, ainda muito impregnado por uma visão caduca e distorcida do que seja a verdadeira economia de mercado.