Título: O estrago do real supervalorizado
Autor: Antonio Delfim Netto
Fonte: Valor Econômico, 13/12/2005, Brasil, p. A2

A estimativa do crescimento do PIB no terceiro trimestre deste ano causou um certo espanto. Como de costume, a primeira linha de defesa da autoridade foi tentar colocar em dúvida o barômetro: ele mediria muito mal a "pressão" da agricultura. Trata-se de uma velha disputa: a distribuição do produto real trimestral da agricultura, que é sujeita a variações estacionais muito acentuadas, sempre foi problemática, o que não acontece com o seu PIB anual. É preciso considerar, por outro lado, que a comparação do trimestre deste ano com o seu homólogo do ano anterior já incorpora e corrige, de certa forma, as deficiências das estimativas sujeitas à estacionalidade. Não parece, portanto, haver razão para pensar que o crescimento anual do PIB até o terceiro trimestre de 2004 e o de 2005 será muito diferente do que os 2,6% já publicados pelo IBGE. Tendo em vista o comportamento histórico da sazonalidade das estimativas do PIB, isso nos deixa com a impressão que o crescimento anual não será muito distante de 2,5%. Esse resultado foi produto de alguns fatores importantes: 1) a crença religiosa do Banco Central que a economia brasileira não pode crescer mais do que 3,5% ao ano sem produzir dramáticos efeitos inflacionários; e 2) o estabelecimento arbitrário, pelo CMN, da ambiciosa meta de inflação de 5,1% para ser cumprida dentro do ano. A combinação dessa "crença" e desse "objetivo" levou o Banco Central a elevar o juro real dos papéis do governo de 9% para 14% numa implacável perseguição à atividade econômica. A "perseguição" durou nove meses e destinava-se mesmo a reduzir o ritmo de crescimento do PIB, que estava em 5% no último trimestre do ano de 2004, para os 3,5%, com 5,1% de inflação. A "mão pesada" custou 1,5% de crescimento para obter um problemático "ganho" de 0,5% de inflação, um custo certamente formidável. Custo formidável por dois motivos: 1) porque num mundo que está se afogando em liquidez, a elevada taxa de juros foi importante fator para supervalorização do real (transformada na moeda mais valorizada do mundo), com graves conseqüências sobre as exportações e a produção industrial; e 2) o ganho "extra" de 0,5% da taxa de inflação será devolvido, à medida que o câmbio for corrigido da "supervalorização". O desenvolvimento econômico é, antes de tudo, um "estado de espírito". Pois bem, o "estado de espírito" criado pelos excelentes resultados de 2004 (crescimento de 4,9%, inflação reduzida de 9,3% para 7,6%, saldo em conta corrente positivo e a redução da pobreza e da desigualdade pessoal e regional de renda) foi destruído por três fatores: 1) a lambança em que se meteu o Partido dos Trabalhadores que, além de enfrentar três CPIs, consome-se num "fogo amigo" interno, que aumenta as incertezas; 2) pela constante ameaça sobre a atividade econômica produzida por uma taxa de juros real exagerada; e 3) pelos seus efeitos sobre o câmbio e sobre o crescimento econômico, fatores que poderiam amenizar a "supervalorização" do real. Essa reduz a produção industrial pela excessiva competição desleal das importações e pelos obstáculos às exportações.

'Mão pesada' do BC custou 1,5% de crescimento

Para entender o efeito da taxa cambial sobre a produção industrial é preciso reconhecer a estreita relação entre o crescimento da produção industrial e do PIB entre o trimestre de um ano e o seu homólogo do ano anterior (crescimento anual entre dois trimestres). Podemos dividir a produção industrial em quatro categorias: 1) bens de capital (exceto equipamentos de transporte); 2) bens intermediários; 3) bens de consumo duráveis; e 4) bens de consumo semiduráveis e não duráveis. A segunda categoria é tão ampla que praticamente se confunde com a produção industrial. A demanda das outras categorias depende, um pouco mais ou um pouco menos, da relação de preços das importações (taxa de câmbio nominal multiplicada pelo preço de importação em dólares), divididos pelos preços em reais da produção nacional equivalente. Nos bens de capital, a evidência é bem visível: quando o real se valoriza, substitui-se o nacional pelo estrangeiro. Nos bens de consumo duráveis, ela é aparentemente menor. É mais importante nos bens de consumo semiduráveis (calçados, tecidos, camisetas, roupas de cama, lâmpadas, roupas, tênis etc.), onde a "supervalorização" do real e a "desleal" competição asiática vão destruir empregos internos por substituição da produção nacional e por eliminação das exportações. O peso da categoria de bens semi e não-duráveis na produção industrial é da ordem de 50% a 60%. Sabemos que a variação do PIB num trimestre é proporcional a 0,54% da variação do PIB industrial. Logo, cada 1% de corte na produção dos bens semi e não-duráveis, produzido pela valorização cambial, representa qualquer coisa como uma redução de 0,3% do PIB. É importante, portanto, "maneirar" o cego apelo "às vantagens comparativas", quando a indústria nacional enfrenta condições não-isonômicas, como atualmente.