Título: O Judiciário julga, o Legislativo legisla
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 05/01/2006, Opinião, p. A8
A Constituição de 1988 abrigou, em seu artigo 16º, um dispositivo que impede a mudança nas regras eleitorais no ano anterior às eleições. Não se tratava de uma idiossincrasia dos constituintes, mas o reconhecimento de que as alterações de última hora na legislação deturpavam o processo eleitoral e interferiam nas condições dadas para a alternância de poder, pressuposto básico de qualquer regime democrático. Desde as eleições de 2002, no entanto, o dispositivo constitucional está sob intenso ataque. O primeiro atentado ao pressuposto constitucional de que uma regra eleitoral não pode mudar às vésperas do pleito foi desferido por um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), então na presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Nelson Jobim. Foi dele o voto vitorioso, que orientou o da maioria e tornou obrigatória a verticalização das coligações partidárias em 2002. Era fevereiro. Em outubro seria realizado o primeiro turno das eleições majoritárias e proporcionais, federais e estaduais. A decisão do TSE foi referendada pelo STF, quando este se recusou a julgar ações de inconstitucionalidade contra a decisão. O ministro Sepúlveda Pertence, voto vencido nos julgamentos da verticalização no TSE, e depois no STF, sustentou que o TSE não interpretou a lei, mas legislou; e não apenas isso: mudou regras em ano eleitoral. "A norma constitucional, malgrado dirigida ao legislador, contém princípio que deve levar a Justiça Eleitoral a moderar eventuais impulsos de viradas jurisprudenciais súbitas no ano eleitoral, acerca de regras legais de densas implicações na estratégia para o pleito das forças partidárias", disse Sepúlveda, em seu voto, ainda no julgamento do TSE. Passados quase quatro anos da fúria legiferante de Jobim, o assunto verticalização ainda está em pauta. Primeiro, porque o TSE "interpretou" a Constituição indo muito além do que ela dizia, e contra a legislação eleitoral em vigor. A decisão foi altamente discutível. E o Congresso, que deveria legislar, teve que acatar uma decisão de uma corte eleitoral que não condizia com o espírito constitucional. Em segundo porque, abstraindo-se eventuais efeitos positivos da verticalização, a regra vai totalmente contra a tradição e a história política do país. Mas a crise política impediu que o assunto fosse discutido pelo Legislativo antes do ano eleitoral - aliás, os sobressaltos políticos do ano não apenas afetaram as relações entre Executivo e Legislativo, mas desarticularam a dinâmica intrapartidária inclusive nos assuntos de interesse comum. Agora, o assunto volta novamente à pauta - não na do Congresso, mas do Judiciário. Em entrevista à "Folha de S. Paulo" da última terça, o ministro Marco Aurélio e Mello, do STF, diz que chegou a levar uma consulta a seus pares sobre a decisão do TSE de 2002, mas o presidente do tribunal, ministro Carlos Velloso, ponderou que seria preferível esperar que o Congresso se pronunciasse sobre o assunto. "Depois ele quis apreciar, mas preferi deixar para a abertura de 2006". Mello tem grandes chances de presidir as eleições do próximo ano. Em 2002, sustentou que a decisão do TSE não era uma mera interpretação do artigo 6º da Constituição (que dizia que os partidos deveriam ser nacionais), mas instituía uma obrigatoriedade que não existia no texto constitucional. O assunto verticalização deve, portanto, virar novamente assunto do Judiciário, agora com a possibilidade de inverter a maioria obtida a favor da obrigação de reproduzir a coligação nacional a nível estadual. E, novamente, isso pode acontecer pela mão do Judiciário e em pleno ano eleitoral, quando os partidos já se movem para fazer as alianças dentro das normas até agora definidas. Passados quatro anos, pode-se dizer que a verticalização foi uma decisão política. Ela poderá mudar também por fatores políticos. Sem entrar na discussão sobre se essa é uma regra adequada ou não para os partidos brasileiros, o fato é que, na prática, o assunto pode novamente se constituir num atentado ao artigo 16º, aquele que diz que no ano eleitoral não se mudam regras. É a desmoralização de uma garantia democrática abrigada pela Constituinte, promovida pela mais alta corte do país, que deveria ser responsável pelo cumprimento da lei máxima. É também uma inversão de papéis: o Judiciário deve se limitar a interpretar as leis. Legislar é função do Legislativo.