Título: As chances de uma crise de governabilidade em 2006
Autor: José Matias Pereira
Fonte: Valor Econômico, 05/01/2006, Opinião, p. A8

Política econômica inadequada e corrupção afetaram a credibilidade do governo federal

No debate sobre a conexão que existe entre economia e política, além da necessidade de buscar uma definição dos fatores econômicos e políticos postos em relação uns com outros, também é preciso fazer uma rápida exposição do contexto social em que operam estes fatores. Ressalte-se que a economia política é uma ciência social que realiza uma análise científico-social do capitalismo, visto que a política e a economia estão inter-relacionadas e interagem de forma permanente. Economia política constitui a origem das ciências econômicas. É a partir dessa base teórica que nos propomos a fazer, neste artigo, uma análise prospectiva de 2006. A estratégia do governo Lula de manter e aprofundar as políticas de cunho neoliberal que já vinham sendo implementadas no governo Fernando Henrique produziram efeitos significativos nos campos socioeconômico e político do país. Estas políticas, que se baseiam no pressuposto de que é possível alcançar uma inflação estável com crescimento auto-sustentável, não se mostraram adequadas para resolver os graves problemas da sociedade brasileira. Verifica-se, apoiado nos baixos crescimentos do PIB nos últimos três anos (0,55% em 2003, 4,94% em 2004 e 2,5% em 2005), que a política econômica do governo Lula foi orientada apenas para garantir o controle da inflação, o que impediu que se promovesse a retomada do crescimento em níveis adequados, concomitantemente com a política de estabilização. É necessário registrar que, das políticas adotadas pelo governo federal, as que produziram os maiores impactos negativos sobre a economia brasileira são as políticas fiscal, cambial e monetária. O país convive, de um lado com uma excessiva carga tributária - 36,5% do PIB -, e do outro com uma moeda (o real) muito valorizada, que desestimula a exportação e estimula a importação. Por sua vez, a orientação de manter elevados superávits primários, com elevação da carga tributária e de cortes nos investimentos nos orçamentos dos últimos anos, vem provocando efeitos perversos em diversos setores da economia, com destaque na infra-estrutura do país. Em setembro de 2005, por exemplo, o governo já havia atingido um superávit primário de R$ 86,5 bilhões, ou seja, ultrapassou a meta do ano, que está fixada em R$ 82,75 bilhões. Por sua vez, já havia gasto com juros até o mesmo mês de setembro um total de R$ 120,15 bilhões. Apesar do sacrifício feito, o déficit nominal se situava em R$ 33,65 bilhões. Por sua vez, dados da Câmara Brasileira de Construção Civil indicam que o governo havia liberado, até meados de dezembro de 2005, apenas R$ 783 milhões dos R$ 6,9 bilhões alocados no orçamento para o setor de saneamento no período de 2003 a 2005. Temos alertado que a aplicação de uma política orçamentária prolongadamente restritiva é preocupante. Essa política tem um duplo impacto, pois apesar do seu efeito sobre o déficit financeiro ser imediato, simultaneamente supõe uma gradual piora dos serviços públicos, como saúde, educação, saneamento e transportes. Pode-se aplicar este entendimento para explicar as razões que provocaram a crise no sistema de geração e transmissão de energia elétrica no governo FHC e a situação precária nos sistemas rodoviário e portuário do Brasil na atualidade.

Excesso de demandas frente à pouca capacidade de resposta do governo Lula estimula perda de consenso e acirra disputa

A prática de taxas de juros reais elevadas (próxima de 12% ao ano) está refletindo fortemente no estoque da dívida líquida total do país, que passou de R$ 731,4 bilhões em 2003 para R$ 937,3 bilhões em outubro de 2005. Em 2003, o governo pagou R$ 148,8 bilhões em juros; esse valor situou-se em R$ 134,4 bilhões em 2004; e alcançou R$ 149,4 bilhões em 2005. Registre-se que o endividamento do governo em títulos havia crescido somente até outubro de 2005 em R$ 127 bilhões. Desse total, R$ 114,0 bilhões eram decorrentes do impacto da alta taxa de juros. Estudos recentes sobre os efeitos dessas taxas elevadas de juros na economia indicam que a prática de taxas equivalentes à média dos demais países emergentes permitiria que o Brasil poupasse cerca de R$ 85 bilhões em 2005. As análises das pesquisas de opinião pública no período de 2002 a 2005, por seu turno, mostram que o efeito da implementação de uma política econômica inadequada para os interesses do país, somadas às denúncias de corrupção existente no governo e no próprio PT, está provocando perdas crescentes de credibilidade do governo Lula, afetando a sua base de apoio político. O resultado do segundo turno das eleições de 2002 mostra que Lula obteve 61,3% dos votos válidos, o que representou um total de 52 milhões de votos, contra 38,7% do candidato José Serra. Os resultados das pesquisas realizadas pelo Ibope e a Datafolha, em meados de dezembro de 2005, sinalizam que José Serra venceria a eleição no segundo turno de 2006 com 50% dos votos válidos e Lula obteria 35% dos votos. Essa queda no desempenho de Lula, traduzida em números, indica que ele teve o seu patrimônio eleitoral reduzido em 20 milhões de votos nesse período. Esses dados servem para estimular nos meios políticos a perda de consenso e acirrar as disputas políticas para a eleição do próximo presidente da República no final de 2006. Baseado nesses dados, pode-se concluir que, mesmo num cenário sem maiores turbulências, o governo Lula deverá concluir o seu mandato com um significativo desgaste político, considerando as perdas que vem acumulando nos últimos três anos nos campos político e econômico. Num cenário mais pessimista, porém, no qual se confirme um baixo rendimento da economia em 2006 - aumento de apenas 3,5% a 4% do PIB - e a explicitação dos desvios e da corrupção instalada na administração federal, irão aumentar a crise de credibilidade do governo e acelerar a queda do consenso para um nível muito baixo. Isso poderá provocar um desequilíbrio entre as demandas ao governo e a sua capacidade de administrá-las e atendê-las. O excesso de demandas frente à capacidade de resposta do governo federal se manifestaria por um desequilíbrio que, em seu ponto crítico, poderia conduzir o país a uma crise de governabilidade na fase final do governo Lula. Caso esse quadro venha a se configurar, torna-se relevante que a sociedade, em especial os partidos políticos, setor empresarial, área acadêmica, imprensa, entre outros, busquem preservar as instituições e a própria democracia no país.