Título: Hemorragia milionária
Autor: Tahan, Lilian; Mader, Helena
Fonte: Correio Braziliense, 09/05/2010, Cidades, p. 27

O furto de remédios e equipamentos é um dos problemas mais graves que afetam a rede pública de hospitais e postos

Na medicina, hemorragia significa sangue esvaindo para fora dos vasos, o que pode matar o paciente em questão de horas. O sentido literal desse problema quase sempre letal se aplica figurativa no sistema público de saúde do DF. A rede responsável por cuidar da integridade física de uma população com mais de 2,6 milhões de pessoas sofre com uma espécie de ferida que não estanca: o roubo, o desperdício, a falta de controle. O que se esvai da carente rede pública são remédios, luvas, esparadrapos, agulhas, fios de sutura, seringas e até equipamentos complexos, como respiradores, e peças de raios X. A causa dessas perdas muitas vezes é atribuída a maus servidores e até a pacientes. Em 2009, o orçamento para a compra de remédios e insumos foi de R$ 2 bilhões. Há indícios de que o mau uso de materiais hospitalares, o desperdício de medicamentos e até mesmo o furto de aparelhos e remédios das prateleiras de enfermarias e postos pode ter consumido quase R$ 70 milhões. É dinheiro que colocaria de pé um hospital com capacidade para 150 pacientes internados. O Correio percorreu sete dos 12 hospitais que compõem a rede pública do DF. A reportagem entrevistou diretores, médicos, enfermeiros, farmacêuticos, pacientes e delegados. O resultado são relatos impressionantes do furto de produtos que vão desde aspirinas a antibióticos cuja ampola pode custar R$ 400. No Hospital Regional de Taguatinga (HRT), o segundo maior da capital federal, há setores em que o rolo de esparadrapo teve de ser acorrentado às prateleiras. ¿Aqui, esparadrapo tem pernas¿, ironizou uma enfermeira. Não é só isso. A má-fé combinada com a falta de segurança facilita o extravio não apenas de pequenos objetos. Nesta semana, oito chuveiros, quatro válvulas de descarga, além de torneiras, desapareceram da enfermaria do HRT. Há alguns meses, foram surrupiados seis focos de luz usados nas salas cirúrgicas. Há situações tão graves que viraram caso de polícia, com instauração de inquérito. Existem atualmente três investigações abertas para apurar furto de medicamentos e aparelhos na Delegacia de Falsificações e Defraudações, na Divisão Especial de Crimes contra a Administração Pública e ainda na Delegacia de Repressão a Furtos. As apurações correm em sigilo, mas, segundo o diretor da Polícia Civil, Pedro Cardoso, se referem ao desvio de drogas de alto custo e equipamentos hospitalares. ¿É uma situação preocupante que necessita de uma ação firme do Estado, porque tem reflexo direto na qualidade de vida das pessoas¿, considera Cardoso.

Tumor No Hospital de Base, uma servidora será indiciada por ter roubado o equivalente a R$ 30 mil em remédios (leia matéria na página 28). Foi também no HBDF ¿ onde são atendidos 800 pacientes por dia ¿ que sumiu um aspirador ultrassônico usado no setor de neurocirurgia. O aparelho custa por volta de R$ 80 mil e é essencial para intervenções delicadas, como a retirada de tumores cerebrais. Também foi levado da unidade um respirador destinado a pacientes com doenças graves, equipamento no valor de R$ 10 mil. Em 25 de junho de 2009, a direção do Hospital Regional do Gama (HRG) abriu sindicância para apurar o sumiço de chassis usados em aparelhos de raios X. O procedimento interno foi arquivado por falta de provas. O caso chegou a ser registrado em boletim de ocorrência na 14ª Delegacia de Polícia. No HRT, estão em curso duas investigações sobre servidores flagrados em atitudes suspeitas. Em um dos casos, a funcionária foi pega retirando do hospital jalecos bordados com as iniciais da Secretaria de Saúde. As roupas estavam dentro de uma sacola. O outro processo trata de uma servidora que escondeu na bolsa caixas de Dipirona (um tipo de analgésico) e Berotec (útil no tratamento de asma e bronquite). ¿Há pessoas que agem numa farmácia hospitalar como se estivessem num supermercado. Vão às prateleiras e pegam o que querem, só não pagam, porque acham que a coisa pública não precisa de cuidado¿, diz Joaquim Pereira, diretor do HRT. Médico de carreira da rede pública há mais de 30 anos, Joaquim Pereira confirma que o furto de aparelhos, medicamentos e materiais hospitalares é comum. ¿Certa vez, durante uma visita do programa Saúde da Família, encontrei o lençol do hospital transformado em pano de prato na casa de uma ex-paciente¿, diz o médico, referindo-se a uma mulher que deu à luz no HRT. Pereira acredita que uma das medidas para coibir os furtos é conferir as bolsas e as sacolas de quem entra e sai dos hospitais. ¿Tem de servir para todos, a começar pelo próprio médico que vai dar o exemplo¿, acredita o diretor. Ele ressalva que a má conduta de alguns profissionais existe, mas não é regra: ¿A maioria é gente da melhor qualidade, que enfrenta com firmeza e profissionalismo uma série de dificuldades da rede pública¿.