Título: Indústria releva conflitos
Autor: Nascimento, Solano
Fonte: Correio Braziliense, 10/05/2010, Brasil, p. 6

Lista de países importadores com embates armados quintuplicou no governo Lula. Se o Brasil não vender, outros venderão, diz o Itamaraty

Especial para o Correio

Para as dimensões do setor bélico, a ETR Indústria Mecânica Aeroespacial é uma empresa pequena. Instalada em São José dos Campos (SP), tem três dezenas de funcionários e menos de meia dúzia de clientes fixos no exterior. Mesmo assim, exporta cerca de 70% do que produz, e só em uma venda de bombas para a Força Aérea do Sri Lanka, no ano passado, faturou de U$ 1,1 milhão. Rubens Jacintho, presidente da empresa, não procurou saber o destino que o governo cingalês deu às bombas. ¿Entregamos o produto conforme o especificado¿, diz o empresário. ¿Não posso julgar o que um país vai fazer com ele.¿

É o pensamento-padrão no setor. Ainda que hoje seja comum empresas de diversas áreas selecionarem fornecedores para evitar a compra de matéria-prima resultante de devastação florestal ou trabalho infantil, por exemplo, os exportadores de munição brasileira não cogitam filtrar o outro extremo da cadeia, os compradores. O superintendente Comercial da Indústria de Material Bélico do Brasil (Imbel) é claro ao dizer que a existência ou não de embates no país importador não é analisada. ¿Efetivamente nós não vemos esta questão de conflito interno ou externo¿, afirma o coronel Haroldo Leite Ribeiro.

A empresa é a única estatal da lista de exportadores para países em conflito. Subordinada ao Ministério da Defesa e com sede em Brasília, vendeu em 2003 e 2005 munição de grosso calibre, destinada a destruir tanques, para a Indonésia. Naquela época, o governo indonésio enfrentava o Movimento Aceh Livre em um embate que produziu 12 mil mortos.

Também instalada em São José dos Campos e conhecida pela produção de foguetes para uso militar, a Avibras Indústria Aeroespacial exportou no começo da década para Angola ¿ onde enfrentamentos com raízes econômicas, étnicas e religiosas mataram 1 milhão ¿ e agora foi autorizada a negociar munições com a Índia. Por e-mail, Sami Hassuani, presidente da empresa, ressalta que o objetivo dos clientes internacionais é ¿dar segurança aos seus cidadãos para que possam desempenhar suas funções, manter a ordem e o progresso da nação.¿ A União comprou no começo do ano passado cerca de 25% das ações da Avibras para tentar evitar o fechamento da empresa, que passava por uma grave crise.

A Mectron Engenharia, Indústria e Comércio, também de São José dos Campos, abastece Israel e o Paquistão, um de seus grandes compradores de mísseis. Por meio de sua assessoria de comunicação, a empresa informa que não se pronuncia sobre o assunto.

Regras da ditadura Com sede em Ribeirão Pires (SP), a Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC) é a maior exportadora de munição e vende para cerca de 40 países, entre os quais há seis com conflitos étnicos e religiosos. É o caso das Filipinas, país no qual enfrentamentos de conotação religiosa já produziram 97 mil mortes. ¿A gente segue a regra do governo, cem por cento¿, afirma Andreas Kripzak, diretor de Exportações da CBC.

A regra do governo é a Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar (Pnemem), foi definida em 1974, durante o regime militar, e alterada em 1990, no governo de Fernando Collor de Mello. Em 2002, o Ministério da Defesa criou um grupo de trabalho para atualizar a política, o que não foi feito até hoje. O texto da política é claro sobre a intenção do Executivo de estimular as exportações e afirma que diplomatas e adidos militares brasileiros devem se esforçar para isso.

Na análise para liberação de exportações, o Ministério da Defesa é encarregado da avaliação técnica. O papel do Itamaraty está descrito no item 12: ¿Ao Ministério das Relações Exteriores compete pronunciar-se quanto à conveniência de cada operação de exportação de material de emprego militar do ponto de vista das relações exteriores do Brasil¿. Essa avaliação leva em conta embargos da ONU, a situação interna e externa dos compradores e, no ano passado, gerou o veto a exportações para países como Sudão, Ruanda, Geórgia e República Democrática do Congo.

A existência de conflito armado, de natureza étnica e religiosa, não é um empecilho para a venda, confirma Norton Rapesta, diretor do Departamento de Promoção Comercial do Itamaraty. ¿Isso é analisado caso a caso¿, afirma. ¿Vamos deixar de ser vestais, se o Brasil não vender, outro vai vender¿. No caso do Sri Lanka, Rapesta lembra que a condenação da ONU foi posterior à ofensiva do importador das bombas brasileiras: ¿No momento em que você autoriza a venda, você não tem a informação `nós vamos comprar armas para dizimar civis¿¿.

Mandato petista Ainda que a lista de países com enfrentamentos étnicos e religiosos não tenha variado muito, o total de clientes desse tipo abastecidos pelo Brasil cresceu na década. De 2000 a 2002, no final do governo de Fernando Henrique Cardoso, em média um país com esses conflitos comprou munição brasileira a cada ano. No primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, de 2003 a 2006, a média anual subiu para três países. Neste segundo mandato, já são cinco nações com embates abastecidas por ano. Em parte, isso reflete o crescimento nas exportações de munições de uma maneira geral, cuja média do último triênio equivale ao triplo da registrada ao final do governo de Fernando Henrique.

Apesar de terem crescido e serem importantes para algumas empresas, as vendas a países com conflitos étnicos e religiosos são ínfimas se analisadas dentro da balança comercial brasileira. No ano passado, do total de U$ 147,3 milhões de munições exportadas, apenas 2% saíram de nações com esses embates. E toda a munição brasileira vendida para outros países, pacificados ou não, equivale a menos de 0,1% das exportações nacionais.

Entregamos o produto conforme o especificado. Não posso julgar o que um país vai fazer com ele¿

Rubens Jacintho, presidente da ETR Indústria Mecânica Aeroespacial, que exporta bombas para o Sri Lanka

Ocultação de dados

Os ministérios da Defesa e das Relações Exteriores não divulgam grande parte das informações relacionadas à exportação de munições. A pasta do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic), além de também sonegar dados, registra em tabelas disponíveis em seu portal a venda de bombas, mísseis, foguetes e outras munições como sendo de ¿cartuchos¿ para espingardas e carabinas de cano liso, armas com frequência associadas à caça e a clubes de tiros.

Procurado pela reportagem, o deputado Edson Duarte (PV-BA) fez quatro requerimentos de informações ao Mdic sobre exportação de munições. O ministério informou valores, países de destino e peso do material vendido ¿ grande parte dos dados usados nesta reportagem ¿, mas não forneceu nomes de exportadores, de importadores nem o tipo de munição comercializada. Alegando sigilo de contratos, exportadores também se negam a dar informações sobre vendas de munição para outros países.

A assessoria de Comunicação do Mdic explicou que usa no portal a denominação ¿cartucho¿ para não revelar o tipo de munição exportada. A Defesa informou em nota que dados sobre vendas ao exterior de bombas, mísseis e foguetes ¿constituem informações de caráter reservado¿, e o Itamaraty reiterou, por meio da assessoria de Imprensa, que detalhes dessas exportações não são públicos.

¿Pode ser que não interesse ao comprador que se saiba de quem ele está comprando¿, afirma Norton Rapesta, diretor do Departamento de Promoção Comercial do Itamaraty. As 19 páginas da Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar não têm nenhuma referência à necessidade de sigilo. (SN)

Negociação com o Irã

Em comunicado de 19 de outubro do ano passado, o Itamaraty autorizou a CBC a negociar a venda de munições para o Irã, presidido por Mahmoud Ahmadinejad, suspeito de tentar produzir ogivas atômicas. O Brasil é um dos maiores opositores à ideia de sanções comerciais ao Irã. A solicitação tinha sido feita pela CBC um mês antes, mas a venda é questionada até dentro da empresa. ¿Eu, particularmente, não exportaria um grama de nada para o Irã¿, diz Gilberto Salm, consultor de Exportações da CBC. Ele ressalta estar dando sua opinião pessoal. Andreas Kripzak, diretor de Exportações, se limita a informar, por e-mail, que os pedidos de autorização da CBC ¿seguem estritamente¿ as regras do governo.

¿Uma coisa é exportar munição de canhão, e outra, munição de emprego policial-militar¿, justifica Norton Rapesta, diretor do Departamento de Promoção Comercial do Itamaraty. Ele garante que o Brasil só exporta para países ¿legitimamente e democraticamente constituídos¿. Confrontado com a autorização dada também em 2009 para a CBC negociar munições com a Líbia, do ditador homicida Muammar Gaddafi, Rapesta reflete por alguns segundos. ¿O governo da Líbia é reconhecido internacionalmente¿, diz. ¿Você acha que é só o Brasil que tem negócios com a Líbia?¿ (SN)