Título: Na véspera, velhos pedidos e ironias
Autor: Assis Moreira e Sergio Leo
Fonte: Valor Econômico, 13/12/2005, Brasil, p. A5

O diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Pascal Lamy, abrirá hoje oficialmente a conferência ministerial da instituição com ironias contra a linguagem intrincada usada pelos diplomatas para ocultar a falta de acordos. Quando os negociadores falam que querem resultados "ambiciosos" em uma rodada de negociações comerciais, querem dizer, na verdade, que só aceitam um acordo em que os outros participantes façam todas as concessões, planeja dizer Lamy, segundo assessores. Essa foi a forma encontrada pelo executivo para criticar a estagnação das negociações de redução das barreiras comerciais, na atual rodada da OMC. Ontem, véspera da abertura oficial e antes mesmo de qualquer decisão relevante sobre os rumos da atual rodada de negociações, a chamada Rodada Doha, os principais negociadores dos Estados Unidos, da União Européia e do Brasil convocaram entrevistas de imprensa, em que também dirigiram ironias e acusações uns aos outros. É o que o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, chama de "guerra de mídia". Lamy, hoje, segundo seus assessores, pretende concluir seu discurso de abertura com um apelo a todos para um esforço mais sério pela liberalização comercial. Nada ilustra mais os impasses da atual reunião da OMC, porém, que a reunião realizada ontem à noite, no Hotel Renaissance, entre ele e os cinco mais influentes participantes: Estados Unidos, União Européia, Brasil, Índia, Austrália e Japão. Após um comentário inicial de Lamy, cada representante falou e, no fim, o do Japão deu por encerrada a reunião sem que houvesse sequer uma tentativa de conversa entre os participantes. Nas avaliações que faz sobre a atual Rodada Doha, Amorim - que ontem parecia bastante irritado ao deixar a reunião com Lamy - costuma dizer que descobriu, em 2003, na fracassada conferência ministerial da OMC em Cancún, a eficácia dessa guerra de propaganda, pela imprensa, ao assistir às versões "diferentes" sobre o debate dos negociadores, fornecidas em entrevistas diárias pelo vice-representante comercial dos Estados Unidos, Peter Allgeier. "Foi aí que nós, no G-20, mudamos o jogo", lembrou Amorim, ao Valor. "No último dia, em vez de irmos à plenária onde eu sabia que não ia acontecer nada, convocamos a imprensa e tive o privilégio de ser o primeiro a falar, a dar a interpretação sobre o que acontecia." Fortaleceu-se, em Cancún, a pressão de organizações sociais e da opinião pública sobre os países ricos para que atendessem às reivindicações de redução dos subsídios agrícolas que distorcem o comércio internacional. Ontem, o menos favorecido foi a UE. O Japão, um dos mais protecionistas do mundo em agricultura, conseguiu até receber elogios por ter anunciado, dias antes da reunião da OMC, que fará um pacote de US$ 10 bilhões em ajuda aos países mais pobres do mundo. Estados Unidos e Brasil concordaram em elogiar o esforço do governo americano para modificar os subsídios agrícolas que distorcem o comércio e acusaram os europeus de travar as negociações, por afirmarem que não podem oferecer mais medidas de derrubada de barreiras comerciais em agricultura que as já apresentadas. O representante comercial dos EUA, Robert Portman, criticou duramente o argumento europeu de que maiores reduções nas tarifas de importação de produtos agrícolas na UE afetarão negativamente as exportações de países pobres. Esses países, ex-colônias européias da Ásia, da África e do Caribe, hoje vendem ao mercado europeu com tarifas preferenciais, mais baixas, em relação aos concorrentes, e teriam uma "erosão" dessas preferências, alegam os europeus. "Você não pode se esconder atrás da erosão de preferências para proteger seus próprios agricultores", disse Portman, que acusou de "cínica" a posição européia. O negociador americano disse acreditar, porém, que a reunião de Hong Kong poderá ser bem-sucedida na tentativa de fixar regras para produtos agrícolas "sensíveis", que seriam protegidos da competição de importações. Disse esperar, também, decisões sobre a fórmula para reduzir tarifas de importação de bens industriais, exigência feita pelos europeus aos países em desenvolvimento mais avançados, como o Brasil. E defendeu a proposta da moda em Hong Kong, um pacote de ajuda aos países em desenvolvimento mais pobres - ressalvando que alguns produtos competitivos desses países não teriam acesso livre aos EUA. O comissário europeu do Comércio, Peter Mandelson, em entrevista poucas horas antes, havia declarado que a Europa não faria nenhuma nova oferta para abrir seu mercado agrícola, por acreditar que qualquer proposta seria "embolsada" sem nada em troca. Ele culpou o "excessivo foco em agricultura" pelos impasses na Rodada Doha, que estaria abandonando temas também importantes para avançar, como serviços e importações de manufaturados. Falando logo após Portman, Amorim cobrou mais avanços dos EUA em matéria de redução de subsídios e disse que os europeus, por sua importância no comércio, fixam um padrão. "O que a União Européia não dá, os outros não darão", comentou. Enquanto os europeus afirmam terem chegado ao limite, os EUA dizem que podem avançar, se a Europa baixar mais suas tarifas em agricultura, relatou Amorim. "Não faz sentido que nós, países em desenvolvimento, façamos uma redução nas tarifas industriais maior que a dos ricos em agricultura", insistiu. (SL e AM)