Título: O uso do Orçamento como arma de sangrar governo
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 13/12/2005, Opinião, p. A10

Para o público externo, o Congresso, durante o ano, mostrou grande eficiência no exercício de esgrima com adversários, sustentou acusações pelo rádio e pela televisão, alimentou de denúncias as páginas dos jornais, vazou documentos, iniciou processos contra alguns parlamentares e vociferou perguntas agressivas a réus/testemunhas de comissões de inquérito. Essa foi a parte visível do espetáculo. Nos bastidores, fora do atrativo imenso dos processos de devassa, o Legislativo usou de suas prerrogativas - a de legislar, principalmente - para manter coagido ou sob chantagem um Executivo enfraquecido por meses de crise política. Exemplo flagrante é o que tem sido feito com o Orçamento. Nunca, em toda a história da democracia recente, a execução orçamentária foi tão instrumentalizada politicamente. Na edição de domingo, o jornal "Folha de S. Paulo" expõe dados reveladores dessa realidade. Segundo o jornal, o Congresso há meses não vota um projeto de crédito suplementar. Como o governo pouco gastou do que podia empenhar em investimentos ou novos projetos, depreende-se que precise de suplementar apenas gastos correntes. Estes viraram objeto de intensa barganha por parte do PMDB - o partido que ocupa ministérios mas se recusa a ser base governista. No final de julho, o Executivo enviou um projeto de crédito suplementar de R$ 1,3 bilhão para o Ministério da Saúde. Os líderes do PMDB na Câmara e no Senado, Ney Suassuna e Wilson Santiago, com o aval do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), pressionaram o ministro da Saúde, Saraiva Felipe, também peemedebista, a destinar R$ 200 milhões da suplementação para as emendas dos parlamentares. O ministro não tinha como fazer isso: a maior parte do dinheiro era para repasses do Sistema Único de Saúde (SUS) aos Estados; e a verba ainda tinha que fazer frente também a salários e décimo-terceiro de agentes de saúde, assistência médica dos servidores e outros compromissos. O PMDB, então, uniu-se à oposição para bloquear a tramitação do projeto na Comissão Mista de Orçamento. Sem repasses do SUS, os secretários de saúde começaram a pressionar o governo federal - que, no último dia 2, enviou uma medida provisória abrindo crédito complementar de R$ 1,58 bilhão para a Saúde - R$ 1 bilhão para o SUS. O mesmo aconteceu com o programa Bolsa-Família: a suplementação de R$ 1,2 bilhão foi feita via medida provisória, posteriormente rejeitada. Quando isso aconteceu, o dinheiro já havia sido destinado. Por força da inação intencional do Congresso, o dinheiro, que já foi pago às famílias beneficiárias, deixou de ter existência legal. Pelo mesmo caminho vai um projeto de suplementação orçamentária no valor de R$ 7,13 bilhões, para pagamentos de aposentadorias, benefícios da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) e despesas com programas do Ministério do Trabalho. Se o projeto não for aprovado até o dia 20, o governo terá novamente que editar medida provisória para fazer frente a gastos correntes. O PMDB transformou a execução do orçamento de 2005 em instrumento de chantagem política; a oposição, em arma para inviabilizar o governo Lula. O projeto de Orçamento de 2006 trilha o mesmo caminho. O PFL e o PSDB obstruíram sua votação em represália ao ex-deputado José Dirceu (PT-SP), que recorreu seguidas vezes à Justiça para atrasar o seu julgamento e cassação pela Câmara. Terminado o processo que suprimiu o mandato de Dirceu, a oposição já considera desnecessária a votação do projeto. Sem Orçamento aprovado, o governo, em ano de eleição, só poderá gastar 1/12 da receita prevista por mês. Isso amarra consideravelmente qualquer investimento. O país está diante de uma disputa político-eleitoral, cujo palco é o Congresso, que impede até a execução orçamentária. De um lado, existe uma oposição que leva a ferro e fogo a disposição de "sangrar" o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, candidato à reeleição, e o seu governo, mesmo que para isso inviabilize o país e verta um pouco do sangue dos menos favorecidos que recebem aposentadorias ou parcas ajudas de programas sociais. De outro, um partido pseudo-aliado, o PMDB, que, fiel à sua história, tenta tirar uma casquinha da fragilidade do governo para garantir emendas que serão úteis à reeleição dos parlamentares no ano que vem. Pelo que se vê, atrás do espetáculo público dos defensores da moral e dos bons costumes, passam interesses inconfessáveis.