Título: Entre tapas e beijos
Autor: Claudio Salvadori Dedecca
Fonte: Valor Econômico, 13/12/2005, Opinião, p. A10

Dados da PNAD foram festejados, mas divulgação do PIB trimestral trouxe tensão

Nos últimos dias, o IBGE tem sido alvo de beijos, abraços e tapas no âmbito do próprio governo federal. Os dados da PNAD abriram a sessão de beijos e abraços. A divulgação do PIB trimestral inaugurou a de tapas. Os beijos, abraços e tapas não têm origem na análise minuciosa dos resultados das pesquisas, mas na vontade de sua apropriação para os objetivos políticos de governo. A PNAD-2004 deu, ao menos, duas evidências muito claras. Que o país pode crescer e recuperar o nível de emprego formal, mostrando a inconseqüência do governo anterior, que considerou como inevitável a destruição de empregos formais causada pelo Plano Real. A PNAD-2004 alerta que não estamos fadados ao desemprego e à baixa geração de postos de trabalho. A outra revelação foi a redução da desigualdade da renda do trabalho. Movimento marcado pela elevação da renda dos mais pobres e queda daquela dos considerados de renda mais elevada, que não podem ser chamados de ricos por auferirem rendimento ao redor de R$ 8 mil. O governo aplaudiu estas evidências, apesar de elas guardarem pequenos segredos. O primeiro refere-se a uma geração de empregos dominada pela baixa renda e qualificação. O outro diz respeito à menor desigualdade ser produto de uma homogeneização da estrutura de renda do trabalho para um patamar inferior. A PNAD mostrou que o país conseguiu associar elevação da atividade econômica e geração de emprego, apesar das condições de crescimento serem insuficientes para favorecer o perfil de ocupação e renda. E o PIB trimestral? Revela surpresas? Não. O resultado era esperado. Diversos indicadores já apontavam desaceleração da economia, induzindo uma antecipação da decisão da área econômica em favor da elevação do superávit para 5%, o que causou uma tempestade interministerial. A tensão entre Fazenda e Casa Civil revelou a inflexibilidade dos rumos da política econômica e sua insuficiência para um crescimento sustentado. Portanto, afirmar que o PIB trimestral foi uma surpresa negativa é, sendo educado, uma irresponsabilidade pública. Os jardineiros da Esplanada dos Ministérios podiam estar alheios ao fato, mas não os dirigentes que a ocupam. As contas nacionais mostram uma recuperação econômica induzida pelas exportações e uma recomposição lenta e insuficiente do mercado interno para sustentá-la. O Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi) alertou o governo para esta fragilidade da recuperação econômica e, portanto, para as dificuldades de estabelecer um crescimento sustentado. O Iedi é uma organização de grandes empresas brasileiras com elevada participação nas exportações e no próprio mercado interno. Seu diagnóstico expressa a avaliação desta empresas sobre o desempenho econômico brasileiro, consideradas suas estratégias de produção e investimento. Esta posição podia ser também encontrada na avaliação de perspectiva econômica que os grandes bancos encaminham para seus clientes. O segmento econômico que nada de braçadas vinha revelando desconfiança do fôlego da recuperação sob a égide da política econômica atual.

Resultados sociais obtidos pelo governo tendem a se esterilizar diante da obsessão monetarista da política econômica

Cabe ainda menção ao alerta das instituições internacionais, multilaterais ou não, que vinham afirmando que a recuperação colocava o país na lanterninha do desempenho das economias desenvolvidas e em desenvolvimento nesta fase de exuberância da economia internacional. A controvérsia no interior do governo já antecipava o tropeço presente. Quando ministros afirmavam aos quatro ventos ser bom ter estabilidade, mas que ela não basta, passaram a apontar a necessidade de redefinição da política econômica para um crescimento para o desenvolvimento. O presidente pôde defender, em novembro, um ajuste do superávit para 4,25% do PIB. Frente ao aperto orçamentário imposto pela Fazenda e reforçado pela Instrução Normativa 01 do Tesouro Nacional de outubro, a meta somente poderia ser alcançada se o governo colocasse caminhões nas praças das principais capitais para distribuição direta de dinheiro à população. Os processos administrativos de contratação bastam para que esta diretriz não se concretize. O superávit não alcançará o patamar por ele desejado, ficando mais próximo daquele trabalhado pela área econômica durante o ano. Este é o impasse relevante em que se encontra o governo federal. A política econômica atual permitiu a estabilidade da economia. É preciso perguntar que estabilidade é esta, mas este é um tema para outro ensaio. É evidente que, ao final do terceiro ano, ela foi insuficiente para deslanchar um crescimento para o desenvolvimento. Mesmo considerando o esforço expressivo dos demais ministérios para fazer avançar as políticas de desenvolvimento, estas viveram anos de SPA orçamentário, imposto por uma política econômica dominada por uma obsessão monetarista. Infelizmente, a psiquiatria não tem capacidade para lidar com este tipo de obsessão. E nem a sociedade mecanismo de correção do desvario. O tempo passa rápido e o final de governo se aproxima, levando que ele se mova a partir de agora pelos objetivos políticos-eleitorais. Ele percebe que o chão se moveu e abaixo se encontra um precipício, mas constata que a política econômica não lhe proveu uma rede de proteção. Que esta somente poderia existir se as demais políticas públicas tivessem sido realizadas mais plenamente. Assim, estimula a realização destas políticas, ampliando a tensão com o monetarismo da Fazenda. O governo move-se aos trancos em um contexto gravado ainda por uma crise política. Beijos, abraços e tapas caracterizam as relações em seu interior, dele com o Congresso e com a sociedade. Os resultados sociais conseguidos tendem a se esterilizar. Não adianta bradar que fez uma política educacional acertada, um programa de transferência de renda respeitável, uma política de exportação eficiente, uma reorganização da política industrial para o desenvolvimento, uma recuperação da atividade produtiva e do emprego na direção correta, uma recuperação do salário mínimo, se todo este esforço pode ser rapidamente corroído pela obsessão monetarista da política econômica. É provável que não seja mais possível reordenar as diretrizes econômicas e que tenha se perdido uma oportunidade de ouro para recolocar o país na trilha do desenvolvimento. Resta ainda a oportunidade para sua flexibilização, e os aplausos para um processo de homogeneização sócio-econômica por baixo e um crescimento lanterninha de 3% a 5%, que podem dar alguma alegria para a parcela da população mais pobre. Mesmo que crescentemente desconfiada e com expectativas rebaixadas, talvez ela se encontre constrangida a torcer para que isto, ao menos, se sustente.