Título: Liquidez, regimes cambiais e taxa de juro
Autor: Luiz Gonzaga Belluzzo
Fonte: Valor Econômico, 13/12/2005, Opinião, p. A11

Numa economia monetária moderna, o metabolismo da produção, do intercâmbio de mercadorias, das transações com ativos reais e financeiros está submetido à restrição de liquidez. Os mercados financeiros são tribunais que avaliam diariamente - em condições de incerteza - os preços esperados das formas "particulares" de riqueza. Aferem a probabilidade de ativos reprodutivos e financeiros serem adquiridos ou criados antecipadamente pela concessão do crédito emitido pelos bancos e demais intermediários. Nesta avaliação está incluído o cálculo (precário) do prêmio que antecipa a possibilidade dos ativos "particulares" sofrerem perda de valor no momento crucial e inescapável da conversão para a forma "geral", o dinheiro. Alguém já chamou está passagem de "salto perigoso". Há sempre o risco de que, chegado o momento da transfiguração de sua riqueza particular em riqueza geral, o proprietário de ativos ou de mercadorias receba soma de dinheiro inferior - incluídos os rendimentos esperados - ao valor utilizado para produzi-los ou adquiri-los, ou venha a encarnar sua riqueza numa moeda cujo "prêmio de liquidez" está ameaçado por práticas permissivas de monetização das dívidas. Os bancos centrais estão, portanto, submetidos a tensões permanentes. Os credores e proprietários da riqueza líquida costumam exigir mais "austeridade" e os devedores e despossuídos pedem mais generosidade por parte das políticas monetárias. Estas políticas definem, na verdade, as condições de acesso à liquidez, ao obscuro objeto do desejo. Mas, as moedas nacionais estão ligadas umas às outras por um sistema de taxas de câmbio, fixas ou flutuantes. Os bancos centrais são, portanto, interdependentes, enquanto gestores de um sistema universal de pagamentos e de liquidez. Os estudos sobre as relações entre taxas de câmbio e de juros freqüentemente desprezam a existência de uma hierarquia entre as moedas nacionais (já dizia o Conselheiro Acácio que a moeda-reserva é mais líquida do que as outras), circunstância que define condições muito distintas na organização e operação dos mercados financeiros e cambiais. Tais diferenças determinam importantes assimetrias de poder entre os bancos centrais, sobretudo em sua pretensão de manter a moeda nacional "atraente" para a denominação e a aquisição de ativos financeiros públicos e privados. Os teoremas sobre as paridades cobertas das taxas de juros, acrescidas dos prêmios de risco, exprimem de forma tão abstrata quanto empobrecida esta cruel realidade. A sabedoria convencional defende a mobilidade internacional de capitais apoiada em uma analogia imprópria com a teoria das vantagens comparativas, sustentáculo das postulações que recomendam a maior liberdade possível no comércio de mercadorias e serviços. Assim, conforme esta visão, os países que sustentam déficits crônicos em transações correntes revelam "preferência" pelo consumo presente em relação ao consumo futuro e, portanto, têm uma vantagem comparativa na venda de seus ativos em troca de endividamento, o que é compensado pela preferência oposta dos países superavitários e credores.

No rescaldo das crises, os constrangimentos sobre as políticas monetária e fiscal são mais longos nos países que abriram suas contas de capital

Desgraçadamente, os movimentos de capitais dos países credores para os devedores são e sempre foram pró-cíclicos, para desgosto dos que acreditam em Papai Noel ou em modelos mais tolos do que inúteis. Nas economias periféricas, de moeda não-conversível - isto é, com demanda nula por parte de agentes de terceiros países -, o consumo se expande na fase de ingresso líquido de capitais e sofre violentas contrações quando o movimento se inverte, não raro subitamente. Num ambiente internacional de livre movimentação de capitais, os banco centrais dos países de moeda fraca encontram dificuldades em manter, simultaneamente, boas condições de crédito doméstico e a estabilidade de sua moeda. O controle da liquidez em moeda forte é, portanto, crucial para a sempre precária combinação entre estabilidade e crescimento nas economias de moeda não-conversível. Os países periféricos mais bem sucedidos, como a China e a Índia, preferiram manter controles seletivos de câmbio e de capitais e acumular saldos comerciais (e reservas) elevados em moeda-reserva com o propósito de evitar "choques de desvalorização" e, portanto, com a intenção de não perder o controle sobre a taxa de juro doméstica. Os estudiosos que se dispõem a avaliar os efeitos dos controles de capitais sobre o crescimento econômico nas economias emergentes não têm sido capazes de fazer um juízo definitivo. Os resultados econométricos são, na verdade, ambíguos. As condenações peremptórias dessas práticas - apontadas como geradoras de ineficiência alocativa - partem mais freqüentemente de doutrinadores e ideólogos do livre mercado, sem uma base empírica sólida. A experiência recente parece mostrar que no rescaldo das crises os constrangimentos sobre as políticas monetária e fiscal são mais duradouros no caso dos países que abriram imprudentemente suas contas de capital, surfaram nos ciclos liquidez externa e permitiram amplas flutuações de suas moedas nacionais. Quanto aos regimes cambiais, a literatura mais recente está convergindo - um tanto tardiamente - para duas conclusões (é espantoso que alguns brasileiros ainda insistam no receituário desacreditado dos anos 90): 1) não é recomendável a adoção de regimes cambiais "extremos" (taxa fixa ou livre flutuação) e 2) os bons "fundamentos" fiscais (sobretudo a dinâmica da dívida pública interna) podem reduzir substancialmente os prêmios de risco, mas não eliminam - nos países periféricos mais dependentes de financiamento externo - o prêmio de liquidez na formação das taxas de juros domésticas.