Título: Livre comércio contra a pobreza - II
Autor: William R. Cline
Fonte: Valor Econômico, 13/12/2005, Opinião, p. A11
Propostas dos EUA e da UE não reduziriam subsídios que distorcem o comércio agrícola
As fórmulas de redução tarifária propostas para manufaturados, na Rodada Doha, assumiram como tendência a harmonização, reduzindo tarifas altas em maior proporção do que as baixas. O acordo de julho de 2004 permitiu menos do que reciprocidade total dos países em desenvolvimento. Até agora, o grupo dos 20 países em desenvolvimento (com países importantes como Brasil, China e Índia) espera para ver o que a União Européia (UE) e os EUA irão oferecer nas negociações agrícolas antes de formular uma proposta para os manufaturados. Por seu lado, a UE propôs cortar as tarifas de pico fixando um teto de 10% para todas as aplicadas pelos industrializados sobre manufaturados. Um tratamento especial e diferencial por parte dos países em desenvolvimento poderia também implicar em um teto de 15% a 20% para todas tarifas sobre manufaturados. Mesmo os países menos desenvolvidos fariam bem em adotar um teto para evitar graves distorções e ineficiências em suas economias, embora ele pudesse ser fixado em nível mais alto do que nos de renda média (na faixa de 20% a 25%). As negociações avançaram mais em agricultura e manufatura do que em serviços. Muitas análises, porém, mostram que os ganhos da liberalização seriam maiores em serviços do que em bens. Os industrializados querem expandir o acesso para suas multinacionais em áreas como as de serviços financeiros, construção e infra-estrutura. Os países em desenvolvimento são cautelosos nessa questão. Em vez disso, tentam aberturas para serviços de mão-de-obra temporária, que criariam oportunidades para seus trabalhadores convidados em países industrializados. As negociações consistem em "ofertas" e "pedidos" país por país em vez de um mecanismo uniforme, pois as proteções no setor de serviços são feitas mais por regulamentação do que por mecanismo de preços. Como parte de uma barganha geral, tanto os industrializados como os em desenvolvimento deveriam iniciar a liberalização de serviços por questões mais fáceis. Por exemplo, a maioria dos países em desenvolvimento que abriram setores bancários a estrangeiros viram que isso os ajudou a estabilizar o sistema bancário doméstico, e a expansão do acesso de mercado em serviços financeiros beneficiaria suas próprias economias e ajudaria a adoçar a pílula de concessões feitas aos industrializados. Estes poderiam oferecer garantia contratual de relacionamento no mercado aberto de serviços internacionais de terceirização. Essa é uma área que causou grande preocupação devido a perda de empregos, e compromissos mais claros por parte dos industrializados de manter esses mercados abertos poderiam ser uma garantia aos países em desenvolvimento de que seria proveitosa a aquisição. A maior oferta potencial que os industrializados poderiam fazer em serviços seria a liberalização do movimento internacional de mão-de-obra temporária. Mas essa área é política e culturalmente delicada e parece improvável obter importante novo acordo dentro do cronograma de Doha, e seria um grave erro inviabilizá-la por causa disso. Sequer está claro se cabe à OMC tratar a questão, ou se seria melhor deixá-la para acordos bilaterais entre países com vínculos geográficos e históricos. O G-20 rejeitou as concessões mínimas à liberalização do comércio agrícola oferecidas pelos EUA e pela UE, em setembro de 2003. O acordo referencial acertado em julho de 2004 repôs as negociações nos trilhos. O G-20 comprometeu-se a eliminar subsídios à exportação de produtos agrícolas e em cortar em pelo menos 20% outros subsídios. É um começo, mas os subsídios às exportações são pequena parte do total de subsídios à agricultura e utilizados principalmente na UE. Para outros mais importantes, os "subsídios comprometidos" - assumidos junto à OMC - superam muito os níveis aplicados, e um corte de 20% não reduziria os montantes efetivamente praticados. Assim, a Rodada Doha precisa avançar além do acordo referencial para ter resultados na agricultura. Em outubro, os EUA divulgaram nova proposta de cortes nas tarifas agrícolas. Com base na proposta do G-20, de gradação por camadas, a idéia é de que tarifas inferiores a 20% sejam reduzidas em cerca de 50%, e os cortes subiriam para 85% a 90% para as superiores a 60%. Haveria também um teto pós-reforma de 75% sobre todas as tarifas sobre produtos agrícolas. A proposta envolve cortes muito grandes - reduzindo, por exemplo, uma tarifa de 60% para 9%. A ênfase americana em cortes reflete suas próprias tarifas, relativamente baixas, em torno de 9%; a tarifa média pós-corte nos EUA ficaria em cerca de 4%. A UE, com posição mais firme na proteção tarifária, respondeu com a proposta de cortes de tarifas de até 60% para as mais altas e com uma tarifa global de 46% em média. Considerando que a tarifa média sobre produtos agrícolas na UE é de aproximadamente 33%, isso resultaria em uma média pós-reforma de cerca de 18%. A diferença entre as propostas dos EUA e da UE é ainda maior para as tarifas "extra-quota", que são em média de 35% para os EUA e 79% para a UE. (Tarifas extra-quota mais altas são aplicáveis quando os produtos sujeitos a essa regra ultrapassam o teto da quota). Essas tarifas seriam reduzidas para 36% segundo a fórmula da UE e para 13% segundo a dos EUA. A proposta americana admitiria a classificação, como "produtos sensíveis, de apenas 1% dos itens tarifados, e a da UE, de 8%. Isso poderia englobar a grande maioria das importações da UE. A Rodada Uruguai estabeleceu uma simbologia de graduação para subsídios agrícolas: "amarelo" para subsídios que distorcem a produção, como subsídios a commodities; "azul" para os vinculados a limites de produção, como a manutenção de áreas de plantio em inatividade, e que, portanto, causam menos distorções; e "verde" para os que não distorcem a produção, como subsídios à renda baseados apenas em área historicamente plantada, em vez de baseados em volumes de produção. A Rodada Uruguai também identificou uma Medida Agregada de Suporte (MAS) para subsídios na "caixa" amarela, mas deixou intactos aqueles de até 10% do valor da produção por considerá-los "de minimis", ou muito pequenos para justificar um controle. Proveitosamente, o acordo em torno do referencial de julho de 2004 definiu subsídios gerais domésticos que distorcem o comércio, como a soma das caixas amarela, azul e os "de minimis". A proposta dos EUA de outubro defendeu um corte de 60%, no teto comprometido MAS, dos subsídios dos EUA na caixa amarela, e de 83% para a UE. Segundo a proposta, o limite "de minimis" seria também reduzido à metade e fixado um limite de 2,5% do valor da produção para os subsídios da caixa azul. Após uma fase de adoção gradual em 5 anos e de um período de carência subseqüente de 5 anos, os subsídios remanescentes seriam totalmente suprimidos. (De novo, a UE respondeu com um conjunto menos agressivo de propostas, propondo cortar suas MAS em 70%.) O grande número de caixas, definições e isenções contribui para uma séria falta de transparência nos subsídios agrícolas. Apesar disso, os princípios fundamentais sobre como liberalizar o protecionismo agrícola são simples. As altas tarifas no setor deveriam ser bastante reduzidas, e os subsídios deveriam ser vigorosamente desvinculados da produção para não induzirem níveis de produção acima do estimulado pelas forças normais de mercado, com a conseqüente depressão dos preços mundiais. Um objetivo válido para Doha seria reduzir pelo menos à metade os níveis permitidos para subsídios ainda vinculados à produção, em relação aos efetivamente praticados nos últimos anos. Primeiro, porém, é preciso corrigir um grave defeito na maneira como é hoje mensurada a base de subsídios que distorcem a produção. A caixa amarela MAS inclui um conceito artificial denominado sustentação de preços, igual à produção multiplicada pela diferença entre uma meta de preço administrado e o preço mundial médio em 1986-88. A medida não representa o gasto do contribuinte do fisco e infla a base dos subsídios. Não há subsídio a agricultores; em vez disso, eles são beneficiados indiretamente, pois as tarifas e as tarifas extra-quotas elevam o preço ao nível da meta. Quando um país elimina seu programa de preços administrados, mas mantém o protecionismo geral inalterado, como fez o Japão com o arroz em 1998, a mensuração do suporte a preços de mercado no MAS desaparece, dando a ilusão de reforma nos subsídios sem mudança real na proteção. Essa parte da base de subsídios que distorce o comércio deveria ser excluída de todos os cálculos e compromissos. Contra essa base mais estreita e mais adequadamente mensurada, tanto as propostas apresentadas em outubro pelos EUA ou pela UE praticamente não reduziriam os subsídios que distorcem o comércio de seus níveis efetivos de US$ 16 bilhões e US$ 28 bilhões, respectivamente (em 2001). O objetivo deveria ser o de cortar pelo menos à metade os subsídios sob definição mais estreita.(A parte final do artigo será publicada amanhã).