Título: Sem Sharon, governo pode ficar com falcões
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Fonte: Valor Econômico, 06/01/2006, Internacional, p. A7

E a história se repete. Pela segunda vez na história moderna de Israel, um líder duro e popular, que viu a necessidade de acordo com os palestinos, é barrado no meio do caminho. Ariel Sharon pode até sobreviver ao derrame, mas, mesmo que o faça, parecem remotas suas chances de liderar seu partido recém-criado, o Kadima, na grande vitória que era esperada nas eleições de março. Assim como no assassinato de Yitzhak Rabin, em 1995, isso pode reavivar os falcões e fazer o caminho da paz ainda mais difícil. Muitos não-israelenses, especialmente os palestinos, acham difícil aceitar a noção de que a saída de cena de Sharon pode ser ruim para a paz. Mesmo antes de ganhar notoriedade como arquiteto da invasão do Líbano por Israel em 1982, Sharon já havia se firmado como um superfalcão. Como um jovem oficial nos anos 50, ele ganhou a reputação de ser um comandante mais do que satisfeito em levar a cabo as operações de "retaliação" através das fronteiras do país. Depois da guerra no Líbano, foi forçado a deixar o cargo de ministro da Defesa quando um inquérito o apontou como responsável indireto por permitir que milícias cristãs massacrassem centenas de palestinos nos campos de Sabra e Chatila. Como ministro da Habitação nos anos 90 foi responsável pela construção de assentamentos judeus nas áreas ocupadas da Cisjordânia e da faixa de Gaza. E, em 2000, sua provocativa visita ao Monte do Templo, em Jerusalém, foi o gatilho da segunda Intifada, dando o golpe de misericórdia mas tentativas de Bill Clinton de mediar a paz entre Barak e Arafat. Muitos árabes reagiram com escárnio em 2002 quando Bush o chamou de "homem de paz". A imprensa árabe o chama mais comumente de criminoso de guerra. Por tudo isso - e como Rabin antes -, Sharon parecia neste último ano oferecer aos israelenses uma mistura única de qualidades. Por um lado, especialmente depois de liderar uma impiedosa luta contra-insurgente durante a Intifada, havia as incontestáveis credenciais de ser um falcão na área de segurança. Por outro, ele dizia aceitar a necessidade de Israel fazer concessões territoriais dolorosas e de permitir a emergência de um Estado palestino independente. Em agosto veio a prova de que isso não era só conversa. Apesar da resistência de seu próprio partido, o Likud, Sharon tirou os assentamentos da faixa de Gaza. Ninguém sabe se a Cisjordânia fazia parte de seus próximos planos. Mas o muro que começou a fazer em volta da Cisjordânia sempre pareceu uma tentativa de marcar tanto uma fronteira política quanto uma barreira de segurança. Essa fronteira daria a Israel cerca de 15% da Cisjordânia. Isso ainda é tido como inaceitável pelos palestinos, mas para os israelenses da direita nacionalista-religiosa, oferecer 85% da "Judéia e da Samaria", terras prometidas por Deus, é uma traição que beira a apostasia. Quando os mais à direita no gabinete se rebelaram, Sharon rompeu com eles, deixou o Likud e criou o Kadima. Mesmo para os padrões da volátil e fragmentada democracia de Israel, essa foi uma aposta colossal. Mas, até o derrame de anteontem, parecia estar dando certo. Um partido de centro, pronto para aceitar uma solução de dois Estados, mas duro na área de segurança, é aparentemente tudo o que os israelenses seculares queriam. As pesquisas de opinião sugerem que, com Sharon à frente, o Kadima trucidaria o Likud nas eleições de março. O problema agora é se conseguirá isso sem seu líder maior. Não há um sucessor natural. O premiê em exercício, Ehud Olmert, é um político capaz, com a mesma linha de pensamento de Sharon, mas não tem projeção nacional. Shimon Peres, que deixou o Partido Trabalhista para se filiar ao Kadima, conta com muita desconfiança no país e é um tradicional perdedor de eleições. Como em 1996, na primeira eleição depois do assassinato de Rabin, não é impossível que o desaparecimento de um líder duro de centro faça com que a coalizão liderada pelo Likud volte. Como em 1996, o Likud é novamente liderado por Binyamin Netanyahu, que, após vencer o pleito, fez de tudo para postergar e, por fim, acabar com o processo de paz de Oslo. E, desta vez, o Likud é menos de centro do que era dez anos atrás. O vácuo que Sharon deixa no centro torna difícil imaginar progressos nos acordos de paz com os palestinos. E, para piorar, a política no campo palestino parece uma bagunça ainda maior. Mahmoud Abbas, eleito presidente após a morte de Arafat menos de um ano atrás, se mostrou incapaz de administrar tanto a Cisjordânia quanto a recém-evacuada Faixa de Gaza. Nas eleições parlamentares deste mês, os extremistas islâmicos do Hamas devem ir bem. Israel diz que cortará os poucos contatos que mantém com a Autoridade Nacional Palestina se o Hamas se juntar ao governo de Abbas. Seria errado dizer que, com Sharon, haveria uma marcha inexorável à paz. Não importa quem os lidere, o abismo entre as expectativas dos dois povos continua assustadoramente grande. Parecia que o partido de Sharon iria fazer uma mudança histórica, mobilizando a maioria moderada e quebrando a intransigência dos colonos assentados. É uma ironia que o arquissuperfalcão parecesse ser o homem certo para trazer a paz. Sem Sharon, a esperança se nubla de novo.